Talvez seja preciso começar por dizer que "Torre Bela" é uma obra em aberto. Desde a sua primeiraapresentação pública, em Cannes 1977, que foi visto em várias versões, com as mais diferentes extensões -de montagens com apenas 45 minutos a outras com mais do dobro da duração (e montador do filme, Roberto Perpignani, garante ter trabalhado numa versão com perto de quatro horas de que, aparentemente, não sobrou rasto). A versão que agora estreia temaproximadamente 105 minutos, e é portanto maior do que aquela que há não muito tempo foi oferecida emDVD pelo PÚBLICO, que tinha sensivelmente 80 minutos. É um caso flagrante na dificuldade de"fixação" definitiva de uma obra cinematográfica. Ainda hoje o realizador Thomas Harlan (n. 1929) faz menção de continuar a trabalhar (alterando muito ou pouco) na montagem do filme. Rodado em super 8, depois ampliado para formatos mais consentâneos comexibição em sala, "Torre Bela" chega-nos agora numa cópia em vídeo, com total beneplácito do realizador. Segundo rezam as nossas fontes, esta cópia vídeo, com a tal uma hora e três quartos de duração, foi feita há alguns anos (com que objectivo, isso parece que ninguém, nem Harlan, se recorda com precisão) e encontrada recentemente, servindo de base a esta reposição, ao que sabemos por sugestão do próprio realizador.Na história do "cinema militante" feito em Portugal na sequência do 25 de Abril "Torre Bela" tornou-se umtítulo mítico. As questões acima expostas contribuem para isso, mas há outros factores não despiciendos.O próprio realizador, por exemplo, Thomas Harlan (filho nem mais nem menos de Veit Harlan, o realizador do "Judeu Suss") é sobretudo escritor, e apenas pontualmente dirigiu filmes. Em 1974/75 andou por cá, um dos vários estrangeiros atraídos pela revolução portuguesa e pelas suas particularidades. Mais importantes ainda são os episódios narrados pelo filme, que testemunham a "reforma agrária" no terreno e aqueles breves momentos em que em Portugal se viveu a quimera do "poder popular": "Torre Bela" é a história da ocupação de uma herdade alentejana por um grupo de camponeses organizados (mais oumenos organizados) em cooperativa.
Em 2007 há que pôr aspas na "militância" no entanto. Se "Torre Bela" sobreviveu (e sobreviveu melhor do que muitos outros filmes) dentro da nuvem do "cinemamilitante" pós-25 de Abril é porque não confunde a "militância" do gesto com a "militância" do seuresultado cinematográfico. É um filme próximo dos camponeses, filmado de dentro do "poder popular". Mas essa proximidade é trabalhada no sentido de umaneutralidade descritiva altamente pormenorizada. Uma das forças de "Torre Bela", enquanto objectodocumental, é o facto de poder ser visto como um "mapa", logístico e ideológico, daquela situaçãoespecífica e de outras, mais gerais, que nela se reflectiam - a história de um caso particular que condensa algo do pequeno universo que era Portugal em 74/75. A organização dos camponeses, as relações com as formações partidárias ou com os militares, o activismo cultural (há um momento com José Afonso,Vitorino e, se não nos enganamos, Francisco Fanhais, a cantarem "Grândola Vila Morena" para uma plateia de camponeses), as próprias questões de classe: "Torre Bela" é um testemunho límpido, ehistoricamente quase "educativo", de um momento crucial na vida portuguesa das últimas décadas.
E pode sê-lo porque Harlan não imprime uma "leitura" ao seu filme, razão por que o filme, pelo menosvisto de hoje, se escapa à dimensão mais propriamente militante, no sentido redutor da palavra"militante". Há como que um espaço em branco na relação entre o filme os acontecimentos que narra (ainexistência de voz "off " a forçar um determinado entendimento contribui para isso). E esse espaço em branco contribui para uma espécie de fantasmagoria. Que é a fantasmagoria que se vê nas cenas rodadas na casa do Duque de Lafões, o expropriado proprietário da herdade de Torre Bela. Primeiro, aquele breve plano (o mais enigmático do filme) que nos mostra uma sala e alguém (quem?) que toca piano. Depois, a"ocupação", os camponeses que remexem gavetas e armários, experimentam colares e vestidos, mandam palpites sobre as fotografias de família expostas nasparedes e nas prateleiras. "Ainda vamos mas é todos presos", comenta um camponês. Frase lapidar que revela uma noção das coisas, não importa quão ingénua: passamos, nessas cenas, de um "mundo político", onde todos são "categorias", para um "mundo íntimo", onde todos são indivíduos. E se em termos de categorias políticas todos são entidadesabstractas, há ali um momento em que todos (os ocupantes como os "ocupados") voltam a ser indivíduos. A capacidade de revelar este confronto, esta contradição, entre a abstracção política e a integridade individual, de forma tão sucinta quanto arrepiante, é a mais explícita linha de demarcação, em "Torre Bela", entre a retórica militante e ainterrogação documental. É preciso ver este filme, se queremos ser portugueses e ter a mania de terideias sobre Portugal.