Reforma negada em cinco minutos e quatro linhas

Parecer da junta médica não dá qualquer argumento
e parece ter como única sustentação a "boa aparência" do requerente. A doente quer a anulação da decisão.

Pequeno destaque em caixa com fundo que tambem pode servir de legenda para a fotografia do lado esquerdo O auto de junta médica, em quatro linhas, diz que a doente está capaz, sem apresentar qualquer argumentação
Quem sofre de cancro beneficia de condições especiais de aposentação, como determina o Decreto-Lei n.º 173/2001. Com as recentes polémicas acerca da composição das juntas médicas da CGA que integram, além dos médicos, um funcionário dessa instituição, o Governo aprovou a revisão da constituição das juntas com uma nova lei que estabelece que elas passem a ser apenas constituídas por médicos e ordenou ainda uma auditoria ao trabalho dessas equipas, cujo resultado será conhecido em Setembro. O novo decreto aumenta também os direitos de recurso, por parte dos requerentes, de processos de verificação de incapacidades. O bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, já propôs, por outro lado, a criação de uma nova competência e formação própria de medicina da segurança social e seguros.
a Maria Alexandra Gonçalves, de 57 anos, licenciada em Administração e Antropologia, assessora principal da Direcção-Geral de Energia, com 37 anos e meio de descontos efectuados para a Caixa Geral de Aposentações (CGA), teve a infelicidade de ser surpreendida, em Maio de 2003, com um diagnóstico de cancro nos intestinos. Após uma cirurgia de urgência, em Junho do mesmo ano, fez quimioterapia e radioterapia ao longo de sete meses.
Antes de fazer a quimioterapia, uma junta médica da Administração Regional de Saúde perante a qual com-
pareceu, considerou que tinha uma "incapacidade permanente global de 85 por cento". No entanto, salvo curtos períodos de baixa, Maria Alexandra Gonçalves nunca interrompeu a sua actividade profissional. O seu es-
tado de saúde estabilizou, mas o em-
bate com a doença e os efeitos secun-
dários dos tratamentos deixaram marcas que a fragilizaram tanto física como emocionalmente, conta ao PÚBLICO. A 25 de Julho de 2006, Maria Alexandra Gonçalves decidiu, finalmente, requerer a sua aposentação, o que implicava novo parecer de uma junta médica. E foi o início da segunda parte desta história.
A observação pela junta médica da Caixa Geral de Aposentações foi marcada para finais de Dezembro, cinco meses depois do pedido ter sido apresentado. O que lá se passou é assim descrito por Alexandra Gonçalves: "Entrei, com um saco cheio de exames, cumprimentei e estendi a mão a um dos médicos. Mas a minha mão ficou no ar e, como resposta, só ouvi: "Sente-se!". Depois, o mesmo médico que não tinha respondido ao meu cumprimento, olhou para mim e para o atestado da outra junta médica onde constavam as minhas habilitações e disse: "Com estas habilitações e com esse aspecto, não quer trabalhar?" E eu, que trabalho desde muito nova e que estudei à minha custa, sensível como me sentia, comecei a chorar". A observação "não deve ter demorado cinco minutos", assegura Alexandra Gonçalves, referindo que, apesar da
sua insistência, os médicos não qui-
seram ver nenhum dos exames que levava, repetindo que estava em per-
feitas condições de trabalhar. "No final, estava tão chocada e desorientada que não encontrava a porta da saída. E perguntei como é que saía. "Por onde entrou", foi a resposta.
Mais tarde, procurou saber quem eram os médicos, visto que não esta-
vam identificados, mas, nos serviços, sempre lhe negaram essa informação.
O médico oncologista que segue Alexandra Gonçalves, Nuno Gil, referira na informação clínica dirigida à junta médica as "sequelas funcionais" resultantes da doença: "síndrome de fadiga crónica" e "urgência fecal com episódios de incontinência, relacionados evidentemente com a existência de um recto muito curto e pouco distensível (efeito da radioterapia) situação que lhe limita muito a autonomia e qualidade de vida". Estas sequelas, considera Nuno Gil, justificam "que lhe seja concedida a reforma por in-
validez".
Quatro linhas
Estes argumentos, porém, não convenceram os clínicos e, no dia 9 de Janeiro deste ano, Alexandra Gonçalves recebeu o despacho da direcção da CGA indeferindo o seu pedido.
Alexandra Gonçalves ficou "indignada" e pediu a cópia do parecer da jun-
ta e dos documentos que serviram de fundamentação à decisão.
Numa folha com o timbre da CGA e com assinaturas irreconhecíves, a cópia do auto de junta médica foi en-
viada aos requerentes. Em quatro linhas, o parecer diz que a doente não está "absoluta e permanentemente incapaz para o exercício das suas funções", refere as suas habilitações académicas, o diagnóstico e como es-
tá medicada. Nada mais.
Alexandra Gonçalves requereu então que o seu caso fosse submetido a uma junta médica de revisão como manda a lei. Nuno Gil, que, além de oncologista, é pós-graduado em cui-
dados paliativos e membro da direcção do colégio da especialidade de oncologia, reforçou, com uma in-
formação clínica detalhada, este pe-
dido. E manifestou a sua surpresa pela recusa do "reconhecimento da situação de invalidez" pelos médicos que compunham a junta. "Foram to-
talmente esquecidas as sequelas fun-
cionais que em devido tempo, e da forma mais clara que pude, foram expressas em relatório por mim efec-
tuado", escreve, acrescentando: "Fico a pensar por que razão estas sequelas não tenham sido claramente mencionadas como não causadoras de incapacidade (e qual a sua fundamentação técnica), uma vez que foram objecto da minha especificação e, segundo a minha opinião, duas boas razões para ser considerada a incapacidade".
Nuno Gil questiona o tempo que a junta levou a observar a doente, cuja esperança de vida, afirma, se encontra "reduzida". "Pergunto-me se os meus argumentos foram devidamente ponderados (e equilibradamente valorizados) numa junta médica que demorou menos de cinco minutos a ser feita..." O facto de a doente "manter uma boa aparência física não pode ser o único argumento de decisão sobre uma reforma", nota, referindo que "em lato senso" ela retém "capacidade funcional para a sua actividade profissional", mas "considerada a situação como um todo (e a parte emocional é tão importante como a parte física) tenho a certeza que não".
A resposta chegou assinada pelo médico-chefe, Camilo Sequeira, que não respondeu ao pedido de contacto do PÚBLICO. E que invoca a "interpretação jurídica da lei" para fundamentar o parecer negativo: "cancro em remissão não é critério de aposentação", diz. Na sua opinião, "o dr. Gil, apesar de internista e oncologista, tem da lei que se aplica à aposentação por doença oncológica uma interpretação errada e clínica e socialmente desadequada".
No parecer em que reafirma não existir indicação para junta de revisão, Camilo Sequeira sublinha: "Cabe-nos a nós, que temos de apoiar o doente e de promover a sua adaptação crítica aos particulares desta vida, tentar a sua adequação ao quotidiano (...)"
Nuno Gil submeteu este parecer ao colégio da especialidade de oncologia da Ordem para que seja avaliada a conduta de Camilo Sequeira.

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