Um espaço de errância
Se há em Portugal um encenador que encontrou na dramaturgia de Tchekov a matéria exacta para o exercício da sua sensibilidade, esse será Rogério de Carvalho. Ainda que recuse sistematicamente o epíteto de especialista em Tchekov, é dos criadores portugueses que mais afinidades criou com o dramaturgo russo. Com efeito, já são quase uma dezena as incursões deste encenador pelo universo tchekoviano. Contudo, longe vai já o Tio Vânia, do Teatro da Caixa, que em 1980 lhe valeu o prémio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro para melhor encenação e que foi citado no Inventário Teatral de Iberoamérica-Escenarios de los Mundos (Madrid: 1989) como um dos vinte melhores espectáculos do teatro português.Não tão arrojado, este espectáculo da Ensemble - Sociedade de Actores apresenta algumas semelhanças estilísticas com O cerejal que Rogério de Carvalho encenou com a Escola da Noite (em 2004), ambos com cenografia de João Mendes Ribeiro: a escolha por uma imparcialidade dramatúrgica, uma depuração formal e um ênfase no poder evocativo da palavra. Mas agora, estes vectores são levados a consequências mais extremas. Se no espectáculo de Coimbra o trabalho de João Mendes Ribeiro tinha em quatro grandes caixas de madeira a marca mais visível para uma ideia de peso e confinamento, com a Ensemble a cenografia parece ter-se quase eclipsado. As personagens surgem numa enorme caixa forrada a preto onde, no início do espectáculo, estão somente um armário, uma cadeira e um sofá - depois, durante o espectáculo, estes sairão e aparecerão outros objectos (cadeiras, bancos, móveis...) mas nunca em número ou tamanho capaz de ofuscar a vastidão negra do palco.
Neste ambiente espectral, os actores aparecem em cena como se de fantasmas se tratassem. Escutamos aqui o eco de uma frase do próprio encenador que em 2002 nos confessava: "Tchekov tem uma coisa muito boa: faz aparecer as personagens e depois no final fá-las desaparecer. E portanto, esse sítio onde as personagens se encontram - o palco - parece que é um espaço de errância. Parece que é um espaço onde elas estiveram adormecidas e acordam". Esta ideia parece ser a que subjaz às cenas mais inquietantes do espectáculo: nos vários momentos em que os actores, à boca de cena, se dirigem ao público, de caras absortas; ou quando todo o elenco aparece ao fundo, em posições estáticas, assistindo ao desenrolar da acção. As figuras tchekovianas configuram-se aqui como fantasmas que somente no palco assumem voz e materialidade.
Rogério de Carvalho é servido por um elenco extremamente homogéneo, um colectivo no verdadeiro sentido, que serve as personagens e o texto com extremo cuidado. Contudo, talvez Lopakhine (Ivo Alexandre) tenha sido "arlequinizado" em demasia, o estudante Petia (Bernardo de Almeida) retratado como uma figura demasiadamente positiva ou o proprietário rural Píchik (Jorge Vasques) sofrido com a abordagem clownesca de que foi alvo. Quanto à Liuba de Emília Silvestre e ao Gaev de Jorge Pinto: interpretações memoráveis.
Não obstante tudo isto, falta a este Cerejal uma opção de fundo que configure a história desta família e da venda do cerejal. Mais do que uma experiência teatral, este texto deveria ser uma continuada reflexão sobre o homem e sobre o mundo: e, nesta encenação, isso não acontece.
Rui Pina Coelho