Torne-se perito

Como Donatella reinventou a Versace

Gianni Versace morreu há dez anos. A sua herdeira profissional e criativa é a irmã,
Donatella, que tem mantido a casa de moda num difícil equilíbrio de drama,
drogas e rock n"roll. Por Joana Amaral Cardoso

a O futuro de uma das mais conhecidas marcas de moda italianas está nas mãos de uma família que hoje é dominada por mulheres.Donatella Versace é a sucessora criativa do irmão, Gianni Versace, assassinado há dez anos em Miami, Estados Unidos, e a sua filha Allegra, que herdou aos 18 anos metade das acções da Versace, além de grande parte da fortuna do tio.
Elas são o futuro da casa Versace, que já não tem o brilho dos anos 1980 mas que continua uma tradição de drama, drogas e rock n"roll. Quando Gianni morreu, tinha acabado de resolver uma discussão com Donatella que fizera com que não se falassem durante meses. Os Versace são temperamentais, diz-se, e adoram-se com o mesmo fervor com que se zangam.
Na altura do crime, Gianni Versace tinha 50 anos, Donatella 38 anos e era uma figura secundária do império da família, também controlado em parte pelo irmão mais velho Santo Versace (que detém 30 por cento da companhia; Donatella tem 20 por cento).
A mulher de extensões e cabelos loiros platinados (usa-os assim desde os 11 anos), bronzeado permanente e roupa justa é hoje um símbolo tão forte quanto foi o irmão.
Gianni fez roupas para o filme Kika, de Pedro Almodóvar, e para a série Miami Vice. Donatella é uma referência da moda e nas paródias que se baseiam nesse mundo - desde o filme O Diabo Veste Prada à série Betty Feia (exibida na SIC), em que a personagem Fabia é uma caricatura da loira Versace.
Hoje, a Versace já não vale o que valia, nem é um nome que integre as listas de mais poderosos, mais valiosos ou ditadores de gosto mundial de revistas como a Forbes, que representam um atestado de reconhecimento transversal de uma marca. Mas continua a navegar com sucesso no instável oceano da moda mundial, com os créditos entregues a Donatella.
Ela manteve a marca de água Versace em tudo o que fez nesta década sem Gianni, mas actualizou-a. "A coisa do exibicionismo terminou", disse Donatella há uns anos, como que a reconhecer que o minimalismo dos anos 1990 a forçou a definir novo rumo para a moda. Com Miuccia Prada e Marc Jacobs a dominar na secção de novidades, restava à Versace esperar, em pousio, que se tornasse em algo vintage ou, então, reinventar-se.
Claire Wilcox, comissária da exposição em honra de Gianni Versace no Victoria & Albert Museum de Londres, passou em revista os arquivos da marca em Milão e conheceu de perto a Versace de Gianni e a Versace de Donatella. "Donatella é uma voz diferente", comentou no semanário britânico Observer. Ela é uma pessoa mais extrovertida do que o irmão, mas a sua moda é mais "suave, de uma feminilidade mais moderna".
O facto é que actualmente, com o regresso da inspiração 80s, os criadores de moda voltaram-se para a Versace em busca de ideias. Afinal, a Versace também já é vintage. "Em todas as colecções de Gianni há arrojo, modernidade e acima de tudo glamour - todas qualidades que parecem raras nestes últimos anos de moda, mais moderados. As criações de Gianni sempre tiveram como objectivo glorificar o corpo. É por isso que ainda são tão apelativas", comentou Donatella Versace na Time.
E enquanto a Gucci emulava a Versace dos anos 1980 nas colecções do ano passado, Donatella baralhava e voltava a dar as cartas com o V de Versace, mudando a sua arquitectura mas mantendo presente a herança de família. Sexy, sim, mas não tão justo. Os vestidos e calças coladas ao corpo foram actualizados com cinturas mais soltas, vestidos mais geométricos e ganharam uma nova envolvência, mais ampla e distante das silhuetas que, por mais invernosas ou outonais que fossem, eram sempre coladas ao corpo, casulos de sensualidade. "Ainda é muito Versace, mas quero afastar-me do que fiz antes", diz Donatella.
A colecção apresentada em Milão em Fevereiro foi muito emotiva para Donatella. Dez anos após a morte do irmão, lá estava ela de novo em xeque. Entre as peças, havia um conjunto de vestidos de cocktail de malha metálica prateada com quadrados. "Foi uma homenagem a Gianni", disse Donatella, porque à medida que iam passando por diferentes luzes e cores juntavam ao metálico novos tons. A geometria não era coisa de Gianni, mas Donatella fê-la da forma mais próxima do irmão que conseguiu. Não era geometria descritiva, era geometria afectiva, com os rasgos de exagero do antecessor cuidadosamente envoltos em feminilidade. Não havia grandes símbolos, nem impressões barrocas na roupa. Só cortes e silhuetas cuidadas. "Acho que o Gianni teria ficado muito orgulhoso de Donatella", disse a actriz e cliente VIP Liz Hurley no final do desfile.
"Quando Donatella Versace tomou conta da marca", escreveu a jornalista Robin Givhan no Washington Post no final da apresentação da colecção de Outono/Inverno para este ano, "ela falava em trazer a influência de uma mulher à colecção". "Inicialmente, havia apenas pistas dessa mudança de sensibilidade. Uma década depois, a mão feminina está inequivocamente presente", sobretudo numa Semana de Moda de Milão descrita por Givhan como "um pântano de misoginia".
Primeiro desfile
O que sabe, foi Gianni que lhe ensinou. Primeiro através da experiência que recolheu na loja de roupas à medida que a mãe tinha em Reggio, na Calábria, em Itália, depois na própria Versace.
Gianni mudou-se em 1972 para Florença, onde desenhava malhas na Fiori Fiorentini. Donatella foi com ele. Estudou literatura italiana na universidade e queria ser sua relações públicas, mas ele convenceu-a a ser a sua musa profissional, a sua crítica e voz de consciência. Ela era a musa de Gianni, o criador de moda das estrelas que não acreditava no "bom gosto".
O irmão mais velho entregou-lhe os acessórios e a linha de pronto-a-vestir Versus e, mais de 20 anos depois, quando lhe foi diagnosticado um cancro, começou a prepará-la para ser a sua sucessora no caso de não resistir à doença. Gianni combateu o cancro, mas foi surpreendido por Andrew Cunanan, que o atingiu a tiro à porta da sua casa de South Beach, em Miami, faz hoje dez anos.
Três meses depois do assassinato, Donatella lançava uma colecção de pronto-a-vestir, ainda com ideias de Gianni mas já trabalhadas por si, que a Vogue descreveu como "mais do que credível". Esse foi o início da sua entrada no mundo da moda em nome próprio. Na Primavera de 1998 a colecção de alta-costura já foi só dela. Hoje supervisiona mais de dez colecções Versace, entre pronto-a-vestir, alta-costura, marcas femininas e masculinas, criança, etc. E é a responsável máxima pelo design da Versace.
"A coisa mais difícil que alguma vez fiz foi aquele primeiro desfile. As pessoas olhavam para mim e comparavam-me com o Gianni, mas eu sou uma outra pessoa." O problema não era só o luto pelo irmão e a sua sucessão na casa de moda. Eram as drogas. Donatella Versace foi viciada em cocaína desde os 32 anos e só parou de consumir depois de uma reabilitação forçada por uma intervenção dos seus familiares e amigos mais próximos, em Junho de 2004. A única pausa no consumo da droga que "está sempre a mentir-nos", como disse à Vogue americana em 2005, foi nos meses após a morte do irmão. "Parei de consumir cocaína. Não podia chegar tarde ao trabalho, porque o Gianni não estava lá", como antes, para aparar as faltas. "Tive de organizar a minha empresa, a minha família."
Mas "não suportava a dor" e meses depois voltou a esconder os sentimentos no alcalóide. Tomou as rédeas criativas do império fundado pelo irmão com um pulso firme e disse à Vogue, na mesma entrevista, publicada na edição portuguesa, esta frase: "Sou obcecada pelo controlo."
Estrelas leais
É descrita por editores e jornalistas, que se escondem no anonimato para evitar escândalos e processos judiciais, como "neurótica", "imprevisível", "desconfortável". Ela descreve-se como "uma mulher de negócios", "muito séria" que pensa na Versace 24 horas por dia.
A personalidade controladora dificultou-lhe a estadia numa clínica de reabilitação, mas guiou-a na manutenção da iconografia Versace.
Gianni criara vestidos que fizeram modelos transformar-se em actrizes e desconhecidas em celebridades - pense-se em Elizabeth Hurley e no vestido preto com alfinetes de ama dourados que usou na estreia de Quatro Casamentos e um Funeral (1994). E Donatella fez o mesmo.
Gianni rodeou-se de super-modelos e tornou-as numa brigada de beleza inatingível. Cindy Crawford, Christy Turlington, Linda Evangelista, Naomi Campbell numa só campanha Versace e num vídeo - Freedom, de George Michael, que passou para a passerelle de Gianni Versace e criou um dos momentos de moda mais lembrados do início dos anos 1990.
Madonna, Liz Hurley e Elton John começaram com Gianni e ainda hoje acompanham Donatella. Estão nas filas da frente dos desfiles, usam as roupas, aparecem nas campanhas publicitárias, fazem parte do séquito há décadas.
A eles juntaram-se Demi Moore, Catherine Zeta-Jones, Kate Moss, Jennifer Lopez (outra beneficiada por um vestido-ícone, verde com ramagens de palmeira, decote e racha vertiginosas), Britney Spears, Victoria Beckham, Gwyneth Paltrow e as hordas do hip-hop e R&B que se tornaram a rock n" royalty (rock e realeza, como diziam as t-shirts da Versace) do novo milénio. Mary J Blige, Christina Aguilera, Jamelia, Jamie Foxx, Lil" Kim, P. Diddy e muitos outros ídolos do rap reviram-se na imagética de Donatella, que se inspira no que se vê nos vídeos de música, nas revistas e nas festas e concertos para vestir os homens como se estivessem num videoclip de 50 Cent e as mulheres como se fossem dançar com Madonna ou Beyoncé. O culto do bling bling (o calão para o brilho dos diamantes e metais preciosos essenciais à iconografia do hip-hop actual) e a ostentação sexual deste estilo musical funde-se na perfeição com a sensualidade e a extravagância Versace.
A moda é negócio
Na moda, especialmente nos últimos 15 anos, a expansão e extensão das marcas é a rota incontornável para completar a imagem e força de uma marca. Além de vestir e perfumar, uma etiqueta tem de vender um lifestyle - um estilo de vida.
Daí haver mobília, loiça, hotel e casas Versace, planeadas e decoradas das fundações aos bibelots por Donatella.
Todavia, a situação do negócio da família, longe de estar próxima de uma tragédia grega como a da família Onassis, não é famosa. Não são pobres milionários, mas se a casa Versace manteve brilho, não faz lucro como na "era Gianni". As vendas caíram.
Em 1978, Gianni Versace conseguia 11 milhões de euros em vendas. Em 1994, já eram 533 milhões e um ano antes da sua morte a empresa valia 786 milhões. Desde então, a queda foi constante. Em 2003, segundo o New York Times, a empresa reportou perdas de 17,2 por cento, para os 356 milhões de euros, em relação a 2003. Os números, não sendo desastrosos, forçaram a empresa a recorrer à banca e a contrair mais de cem milhões de euros em dívidas. Os custos continuam a ser cortados e a Versace aposta em produtos mais rentáveis, como a perfumaria ou as colecções vendidas aos grandes armazéns antes do início de cada estação, além de ter deixado de apresentar regularmente a sua colecção de alta-costura. Representava "um por cento das vendas", disse Donatella, citada pelo New York Times, como que a justificar a suspensão.
A Versace continua a ser uma das marcas mais poderosas do planeta e um nome que é reconhecido em todos os continentes. Os problemas são atribuídos a má gestão e não tanto à falta de criatividade ou implantação da marca no mercado, apesar de grandes lojas multimarcas terem abdicado de ter sublinhas como a Versace Collection por causa de problemas de fornecimento e falhas comunicação entre Santo e Donatella. Os temperamentos são difíceis de gerir entre irmãos, como eram quando tinham 20 anos, mas tudo em família era um lema para o designer e Donatella tem tentado segui-lo, apesar das zangas com o irmão Santo e dos problemas de saúde da filha, Allegra, de 21 anos. A herdeira maioritária, até agora, mostra vontade de ser actriz e não de ser directora executiva ou criadora de moda.
Hoje à noite, em Milão, há um espectáculo de Maurice Béjart no teatro Scala com as modelos preferidas do costureiro.
"Entendo que (as calças) são confortáveis. Mas ela é uma mulher e pode mostrar isso", disse Donatella Versace ao diário alemão Die Zeit, sobre a indumentária de Hillary Clinton. "Ela deveria encarar a feminilidade como uma vantagem ao invés de tentar imitar os trejeitos masculinos da política." Recomendadas: saias até ao joelho com casaco curto e preto. Proibido: azul, que Hillary usa demasiado. "Eu admiro-a pela sua determinação que, assim espero, a levará à Casa Branca", disse a criadora de moda.

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