Torne-se perito

Desmistificação da escravatura

Os artistas afro-americanos consagrados odeiam-na, porque ela converteu a história da escravatura num teatro de sombras, ambíguas e feéricas. A primeira grande antológica europeia de Kara Walker está em exibição em Paris

a Meu Inimigo, Meu Irmão, Meu Carrasco, Meu Amor é um título tão provocador quanto a exposição que designa. Sediada no Museu de Arte Moderna de Paris até ao próximo dia 9 de Setembro, é a primeira grande exposição monográfica dedicada a Kara Walker na Europa. O que também significa que a artista negra, norte-americana de 37 anos de idade era até à data uma ilustre desconhecida para o grande público, deste lado do Atlântico. Essa ignorância acaba, no entanto, por funcionar como uma vantagem: desconhecendo o rasto de polémica produzido pela sua obra nos Estados Unidos, a maior parte do público europeu poderá apreciá-la sem ideias feitas, deixando-se surpreender por um universo que justamente desafia os preconceitos.A surpresa é garantida desde a primeira aproximação, ou desde o enorme mural Endless Conundrum (2001), que no vestíbulo do piso térreo do museu anuncia a exposição que se desenrola no andar superior. O visitante desprevenido, que eventualmente se encaminha para outros espaços expositivos (há mais duas exposições em cartaz, além da colecção permanente), é primeiro confrontado com um conjunto de silhuetas em tamanho natural. Recortadas em papel negro sobre fundo branco, exibem um aspecto elegante e decorativo. Chegando mais perto, ou examinando as figuras em maior detalhe o que se descobre, no entanto, é da ordem do insólito e do chocante. A época e o lugar a que as sombras aludem não será de imediato descodificável, mas é desde logo evidente que representam conflitos de envolvência racial, sexual e social. São campos de batalha sempre retratados num misto de erotismo, violência e folia, que porventura é o denominador comum da obra de Kara Walker.
Subindo as escadas, ou entrando na exposição propriamente dita, encontram-se mais murais panorâmicos de silhuetas recortadas, que foi o que a artista começou por expor, no Drawing Center de Nova Iorque, em 1994. O tema assumido destas obras é o Sul dos Estados Unidos, na escravatura anterior à Guerra de Secessão, e os estereotipos negativos da negritude, veiculados por toda uma cultura de preconceito, desde melodramas históricos como E Tudo O Vento Levou aos mistrel shows (sátiras aos "costumes" negros protagonizadas por actores brancos de cara pintada). Algumas destas silhuetas ilustram cenas de alcoolismo, vómito e defecação, outras de violação, rapto e sadomaquismo, mas a amputação, o assassínio e a necrofilia também fazem parte do cardápio de atrocidades. Onde era suposto este grotesco teatro da crueldade servir para denunciar a escravatura, o racismo, o sexismo, a homofobia e por aí adiante não se vislumbra moral alguma.
A obra de Kara Walker é aversa a militâncias, ou mesmo exangue de qualquer conteúdo de verdade. Ela parte da história e da herança da escravatura, ainda hoje marcantes das fissuras sociais da sociedade norte-americana, mas depois descola e surrealiza. Ou melhor, dá largas à imaginação em ficções iconográficas que tingem de ambiguidade ou reduzem mesmo ao absurdo a linearidade das clássicas antíteses de mestre/escravo, opressor/oprimido, carrasco/vítima. De resto, estas vinhetas destabilizadoras não encarnam em formas estéticas propriamente pacíficas. As silhuetas recortadas fizeram moda entre a aristocracria europeia da era colonial, são uma tradição europeia depois exportada para os Estados Unidos, onde por sinal foram adoptadas não apenas como expressão artística, mas também como método de identificação dos escravos, constando das respectivas facturas de compra e servindo para o seu reconhecimento em caso de evasão.
A irreverência estética e política de Kara Walker convergiram para fazer dela o ódio de estimação dos artistas afro-americanos instituídos, sobretudo depois de lhe ser atribuído o prestigiado prémio MacArthur, em 1997. Para a geração dos anos 60 e em geral os arautos do publicamente correcto era difícil de engolir, ou mesmo intolerável o sucesso instantâneo duma artista de apenas 27 anos que não apenas assumia um compromisso com tradições artísticas ocidentais, mas sobretudo questionava a imagem da cultura negra nos Estados Unidos que eles tão ciosamente fabricaram. Kara foi então "convocada" para um colóquio dedicado à sua obra na Universidade de Harvard. Não chegou a aparecer, mas em jeito de resposta enviou uma série de desenhos, colagens e aguarelas, que agora formam a base dum segundo núcleo da exposição de Paris. São histórias de amor entre brancos e negros, acompanhadas por anotações carregadas de ironia. Do género: "O que pretendem serão imagens negativas de Brancos e imagens positivas de Negros?" ou "A Solução Final: como estereotipar injustamente os Brancos". Mas o título mais célebre e revelador desta série é sem dúvida: "Gostas de Natas no Café e de Chocolate
no Leite?"
Mais recentemente, ou melhor, desde o início do novo milénio, Kara tem vindo a explorar outras linguagens artísticas, produzindo instalações e filmes aparentemente grosseiros, mas de crescente complexidade semântica e obliquidade estilística, que constituem um terceiro e último núcleo da antológica parisiense. Darkytown Rebellion (2001) é o epítome dessa complexidade: uma projecção de silhuetas que vagueiam na paisagem de bandeiras em punho, à qual se sobrepõe uma segunda com folhagem colorida e luminosa, turvando a leitura até ao patamar do indecifrável. Mais radicais ou mais delirantes são as três curtas-metragens realizadas por Walker desde 2004. Pelo conteúdo, sem dúvida, quando por exemplo a primeira, Testimony: Narrative of a Negress Burned by Good Intentions é uma verdadeira inversão da história, onde são mulheres negras que mandam em homens brancos reduzidos à escravatura e com sexo anal à mistura.
Mas a forma é igualmente inusitada, quando se trata dum regresso ao cinema artesanal, fitas mudas a preto e branco, mal iluminadas e riscadas, desempenhadas por marionetas em cenários de cartão, que obviamente são versões articuladas das suas silhuetas negras, e conferem um inusitado tom de inocência às fantasias cada vez mais abjectas da artista. É precisamente esse efeito perturbador que Kara Walker quer provocar: "Não quero que o espectador seja passivo. Quero criar algo que seja parecido convosco. As minhas silhuetas assemelham-se a personagens de desenhos animados - é uma sombra, um bocado de papel. Faz referência à vossa sombra, à vossa pureza. É o vosso espelho".
A exposição de Kara Walker viaja depois para Nova Iorque, sendo exibida no Whitney Museum de 11 de Outubro próximo a 3 de Fevereiro do próximo ano. Em Portugal, há pelo menos uma obra da artista norte-americana, o mural Untitled 2002-2005, na Ellipse Foundation do Alcoitão.

Kara WalkerMon Ennemi, Mon Frère, Mon Bourreau, Mon Amour
ARC / Musée D"Art Moderne de La Ville de Paris
11, Avenue du Président-Wilson, Paris XVIe
Até 9 de Setembro de 2007
De 3ª a Dom. das 10h às 18h, 6ª e sáb. até às 20h
Visitas guiadas sábados e domingos às 12h (sem reservas)
Telefone: +33 (0) 153674000 e site: www.mam.paris.fr

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