No teatro português faltam papéis para as mulheres mais velhas
Os papéis para mulheres com mais de 40 anos começam a rarear nos reportórios
das companhias teatrais. A conclusão surge no livro O Mundo do Teatro em Portugal,
de Vera Borges, investigadora do ICS. O P2 falou com duas actrizes "seniores"
a Antónia Terrinha fez recentemente 43 anos. É "velha" para o teatro português? Ela, actriz profissional há quase 25 anos, diz que sim. "A partir dos 40 anos, as mulheres são velhas." Descobriu isso quando saiu d" O Bando, há sete anos, numa altura em que o grupo deixou de ter um elenco residente e reservou os contratos de trabalho para as equipas técnica e administrativa. Antónia estava na companhia teatral desde 1984 e, tal como os restantes actores, desdobrava-se em múltiplas tarefas, para além da representação. A polivalência do elenco era uma das características do Bando, grupo que fez escola no meio teatral português.
Quando, em 2000, procurou trabalho junto de outros grupos confrontou-se com dois estigmas: o da idade e o facto de "não ser reconhecida, nem conhecida", devido aos anos de exclusividade para O Bando, o que lhe fechava as portas da televisão. "Foram tempos muito difíceis", recorda.
A falta de trabalho foi ainda mais "desesperante" quando engravidou. Mas a actriz, licenciada em História, não baixou os braços e hoje continua a tentar contrariar a parca oferta de trabalho para actrizes com mais de 40 anos. Dedicou-se à encenação e à escrita dramática e criou uma associação (Teatro em Curso). Mas os convites para representar continuam a ser escassos. E a televisão permanece "fechada" para muitas actrizes que, tal como Antónia Terrinha, optaram durante anos pelo palco.
A televisão tem sido, para Márcia Breia, uma forma de não ficar "parada" quando não há lugar para si nas peças da Cornucópia, companhia há qual está ligada há muitos anos. "Não há muitos papeís interessantes para uma actriz com mais de 50 anos", afirma, argumentando com a escolha dos reportórios e com a escassez de "novos autores que escrevem para mulheres mais velhas".
Márcia Breia está perto de comemorar os seus 40 anos de palco e diz que vê "muitas actrizes" da sua geração "sem trabalho". Não quer apontar razões para este cenário - "haverá razões concretas, mas não me atrevo a falar pela boca de ninguém" -, mas nota que o problema abrange também o sexo masculino. "Não existem muitos actores, com 50 ou 60 anos, que estejam activos e a representar", nota. As telenovelas e séries televisivas podem ser uma espécie de escape para fugir ao desemprego, mas a actriz frisa que também a televisão coloca entraves: "Dá-se muita importância à aparência."
"Outros caminhos" no teatro
A dificuldade em ter um trabalho regular no teatro é comum a Antónia Terrinha e a Márcia Breia. E alastra-se a todas as "actrizes seniores" (com mais de 47 anos), assim concluiu Vera Borges, 34 anos, na sua tese de doutoramento, O Mundo do Teatro em Portugal. Profissão de actor, organizações e mercado de trabalho, recentemente publicada em livro pela Imprensa de Ciências Sociais.
A partir de um inquérito feito a 140 actores, a investigadora, aluna de pós-doutoramento no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, apercebeu-se de que "as actrizes mais velhas são altamente penalizadas" no mercado teatral português. Na amostra dos 140 actores entrevistados (que incluia actores jovens, a meio da carreira e seniores) verificou-se um reduzido número de actrizes seniores (cinco), em contraste com 31 actores das chamadas gerações mais antigas. "Há falta de trabalho", confirma Vera Borges, que, ao longo da sua investigação, estudou 102 grupos teatrais portugueses. "Muitas mulheres acabam por seguir outros caminhos dentro do teatro, como a encenação, porque no palco e na televisão a procura é maior junto das actrizes mais jovens", afirma.
As oportunidades de trabalho para os homens e para as mulheres parecem ser diferentes, salienta Vera Borges, apontando que estas características do mercado teatral português não diferem muito do francês. No seu livro, a investigadora cita Catherine Paradeise, que, no ensaio Les Comédiens (1998), escreve: "As mulheres - principalmente entre os 30 e os 60 anos - encontram-se desfavorecidas face aos homens: por um lado, em volume global, existem actualmente pelo menos tantas actrizes como actores no mercado para menos papéis (dois em dez para uma produção de cinema ou de televisão); por outro lado, em volume por fase de ciclo de vida, a análise das distribuições no cinema e no teatro mostra um grave défice de papéis de "mulher madura"... Elas podem no entanto manter-se na profissão dirigindo o seu esforço de diversificação para a auto-criação de empregos..., para um investimento na periferia do emprego... ou para actividades claramente exteriores".
Vera Borges diz que "os encenadores e os directores dos grupos" talvez pudessem explicar o défice de papéis para actrizes seniores. Poder-se-á falar em discriminação de género no teatro português? "As actrizes mais velhas são muito mal tratadas", responde a investigadora, explicando que as mulheres "não são chamadas para trabalhar". "É a forma como este universo se movimenta, esta voragem do novo, como designaram alguns dos meus entrevistados", acrescenta.
Vera Borges pretende estudar com mais profundidade este tema num trabalho futuro. Por enquanto, dá mais um exemplo: "É curioso que, em grupos onde os actores são multifacetados em termos de tarefas, são quase sempre as mulheres a fazerem os trabalhos de produção. Quando questionei isto as respostas que obtive prendiam-se com a ideia de elas serem mais expeditas e mais rápidas no estabelecimento de relações com outras pessoas. Mas responderam-me também que era uma forma de ocupação porque elas não tinham papéis para representar."
Márcia Breia prefere não falar em discriminação sobre as actrizes mais velhas, afirmando que a escassez de papéis "prende-se com a transformação" da sociedade, que, frisa, também "se insere nas correntes estéticas". "É evidente que há poucos grupos que podem oferecer trabalho a uma actriz mais velha. Até porque a partir dos 60 anos, os actores e actrizes começam a ser olhados como tendo mais limitações", afirma.
Antónia Terrinha, por seu lado, acredita que há discriminação de género, uma vez que "existem mais papéis masculinos". "Vivemos no mundo da imagem e as mulheres mais velhas, a não que ser que sejam mesmo muito mais velhas, não interessam ao teatro português", afirma.