20 toneladas de amendoins por um punhado de episódios
Onde andavam os fãs de uma série quando ela estava prestes a ser cancelada? Eles estavam a vê-la, mas não à hora marcada. O poder de mobilização dos espectadores conseguiu fazê-la regressar no Outono, mas obrigou a norte-americana CBS a olhar para a Internet e para as gravações, para perceber que as audiências já não são o que eram
a Amendoins, bananas, garrafas de molho picante, e-mails e petições on line. Estas são as armas dos fãs das séries de televisão contra o cancelamento ou o final abrupto dos seus programas favoritos.A resposta dos canais de televisão nem sempre é positiva, mas quando é, como foi o caso de Jericho (já comprada pela SIC mas sem estreia marcada), representa o reconhecimento de dois fenómenos.
O primeiro: que os espectadores têm um poder relativo e que ele sempre se traduziu em dinheiro. O segundo: que a medição de audiências já não é o que era, por não contabilizar aqueles que vêem os programas na Internet (legal ou ilegalmente) ou os gravam. As grandes cadeias televisivas estão a ser forçadas a admitir que já não sabem bem quem são, ou onde estão, os seus espectadores.
No mês passado, o fenómeno Jericho passou de fenómeno de culto entre fãs de temas pós-apocalípticos a fenómeno do poder criativo dos consumidores.
A série, que a CBS estreou no final de 2006, começa com o regresso de Jake Green (Skeet Ulrich), um filho pródigo da pequena cidade de Jericho, no Kansas, à sua terra natal depois de cinco anos de uma estranha ausência. Quando começa a partilhar as estranhas histórias sobre o seu paradeiro, há um ataque nuclear e a cidade de Jericho fica isolada.
A série, herdeira do "efeito Perdidos" graças à sequência imperdível dos episódios e à conspiração que rodeia os acontecimentos que dominam o quotidiano das personagens, tinha uma média de oito milhões de espectadores semanais, segundo o Washington Post. Ainda assim, a estação de televisão anunciou em Maio que a primeira temporada seria a única e que Jericho não regressaria no Outono. Para os fãs, a mensagem caiu como uma bomba e começou uma nova corrida às armas. As tácticas bélicas foram os tradicionais telefonemas de descontentamento, os e-mails furiosos, várias petições on line esperançosas e uma boa dose de humor de guerrilha.
No YouTube, começaram a aparecer vídeos de fãs a entregar carregamentos de amendoins aos responsáveis da CBS nas sedes de Nova Iorque e Los Angeles. O Washington Post refere que, no total, foram entregues à CBS 20 toneladas de amendoins em sinal de protesto contra o final da série - tudo porque, no último episódio, há uma referência, que não será aqui revelada para não estragar o visionamento aos espectadores portugueses, ao fruto seco.
O episódio é apenas mais uma página no livro da criatividade dos espectadores americanos. A responsável pela programação da Fox recebeu inúmeras bananas de espuma anti-stress para que a estação não acabasse com De Mal a Pior (Arrested Development, já exibida pela TVI). Os fãs de Everwood (que já passou na RTP2 e está a dar no canal cabo Fox Life) alugaram uma roda gigante para tentar o mesmo com o canal de cabo CW. E, elenca ainda o Post, quando Roswell, uma série sobre extraterrestres também já transmitida pela RTP2, chegou perto do fim, a arma de sensibilização foi o envio de garrafas de molho Tabasco, adoradas pelos alienígenas da série.
A contrapartida
Os fiéis de Jericho podem estar descansados, por enquanto. Depois de tão feérica campanha, conseguiram que a CBS cedesse e que a série regresse com mais oito episódios. Mas com uma condição: "Queremos que eles vejam (a série) às quartas-feiras, às 20h", pediu Nina Tassler, presidente da CBS Entertainment. As séries recebem dinheiro da CBS a partir da medição de audiências e por isso "é de uma importância primária" que os espectadores continuem a vê-las na televisão.
É que, quando a campanha arrancou, e começou a crescer e a crescer e a crescer, a CBS não sabia bem de onde tinham saído tantos fanáticos, porque não apareciam nas contas das audiências tradicionais. A série teve um pico de 11,6 milhões de espectadores, mas só 7,7 milhões viram o encerramento da temporada. A campanha revelou que existem muitos mais fãs, escondidos, talvez, na Internet.
Um dos sinais de que era na Net que os responsáveis do canal deviam procurar foi a acutilância dos contactos dos espectadores contestatários. Eles conseguiam mandar o e-mail para a pessoa certa, conseguiam entrar nas redes informáticas da CBS, conseguiram até o número de telefone directo do chefe de horários da empresa. Eles eram info-instruídos e tinham não só acesso à web, como possuem gravadores de DVD.
Um estudo da CBS, realizado em Maio e revelado pelo New York Times, mostrou que cerca de 700 mil pessoas, pelo menos, gravavam o programa para o ver mais tarde. Continuaram a análise e descobriram que Jericho também era uma das séries mais vistas na página da CBS na Internet. A CBS, à semelhança dos principais canais americanos e do que faz, por exemplo, a RTP com Diz Que É Uma Espécie de Magazine, coloca os seus conteúdos mais populares on line horas depois de passarem na TV. "Claramente, havia uma audiência de pessoas que arranjavam tempo para ver o programa conforme pudessem", comentou David Poltrack, autor do estudo.
Não é a televisão, estúpido!
A decisão de ressuscitar Jericho, que faz lembrar a continuidade de Star Trek à televisão depois dos protestos dos fãs no final da década de 1960, está agora tomada. "Penso que o que se aprendeu com isto foi que os canais de televisão vão ter de olhar para os números e ver quem está a ver as séries, quem está a fazer download delas daqui em diante", comenta, feliz, a criadora da série, Carol Barbee.
Para a autora, que também produz a série, chegou a altura de as cadeias televisivas perceberem que as audiências "já não contam a história toda e que o grupo etário dos 18-49 anos de que tanto gostam está on line", disse ao LA Times. O fenómeno mostra que o negócio da televisão está a mudar. Já não estamos no Kansas.
Não se pode garantir que os fãs, os espectadores, os receptores tenham hoje mais poder no mundo dos média. Os conteúdos que o público produz chegam hoje aos meios de comunicação tradicionais na esteira da loucura do YouTube e da força da Internet colaborativa. Mas há décadas já havia programas de vídeo-amador como Candid Camera ou Isto Só Vídeo. E há 40 anos os fãs da primeira série televisiva da saga Star Trek (NBC) montaram a primeira campanha de envio de cartas para o estúdio produtor da série, a Paramount, para tentar evitar o seu cancelamento.
Fan fiction
Outras tantas campanhas, como as acima descritas, não tiveram qualquer sucesso e o emissor e produtor de conteúdos venceu, deixando séries sem final, penduradas num momento que fazia antever nova temporada, ou acabando programas à pressa. Quando isso acontecia, restava a imaginação. E nascia, novamente com Star Trek, a fan fiction, a ficção inspirada nas séries e escrita pelos admiradores, que continuava, numa espécie de vida artificial, o universo que tanto os apaixonara. Com a Internet, a fan fiction está institucionalizada e há milhares de contos escritos para Harry Potter, para Guerra das Estrelas, para Heroes (TVI) ou para Sobrenatural (AXN). Alojados em sites como o FanLib ou o LiveJournal, autênticas centrais de imitações e paixões, estes guiões amadores só se tornam secundários quando algo de novo do original vem à tona.
O negócio dos extras
E é isso que está a alimentar a vida de David Naylor, um ex-jornalista e produtor da BBC que hoje é produtor de conteúdos extra das edições de DVD de séries e filmes conhecidas, como Perdidos (RTP e Fox), Alias (SIC e AXN), Médium (AXN) ou Missão Impossível III. Naylor é o dono da DVD Group, uma pequena produtora que começou a obter contratos para fazer os extras de alguns dos DVD mais populares ou esperados.
E um dos projectos que tem em mãos é a primeira temporada de Jericho, em cujos documentários, making of e pequenos filmes estava a trabalhar sob a premissa de que iria dar aos espectadores ferrenhos aquilo que mereciam depois da série ter sido cancelada.
"Muitas pessoas vêem a televisão como o parente pobre dos filmes", disse David Naylor ao LA Times. Mas o mercado de DVD televisivo está em plena expansão e representa, para um criador, dezenas de horas de conteúdos ao invés de apenas duas. Os canais estão a lançar mais séries em DVD, novas e antigas, e os consumidores estão receptivos. Segundo as distribuidoras, em Portugal a explosão deu-se em meados de 2006 e, em comparação com o ano passado, este ano os números quase duplicaram em unidades e vendas.
E o DVD tem do seu lado a especificidade das séries de sucesso actuais, que exigem uma fidelidade canina, além de ter um prazo de validade muito alargado nas prateleiras dos vendedores. Já os fãs não se importam de pagar para ver algo de novo com o Jack de Perdidos ou o Jake de Jericho.
Quanto aos apreciadores de Jericho, agora só têm de respeitar o compromisso. Ver a série na televisão, no horário certo. Ou então os produtores têm de se adaptar mais rapidamente às mudanças, sob pena de não saberem bem quem é o seu público - o que é fatal para os anunciantes que os alimentam.
No meio deste caso, um homem ficou particularmente contente. O dono da Nuts Online, que nunca viu a série mas que vendeu toneladas de amendoins graças à investida dos espectadores. "A princípio, pensei que vocês eram doidos (nuts)", diz no site da empresa. Mas, depois de contactar com alguns dos tele-activistas, Jeffrey Braverman ficou "impressionado com a devoção e paixão" dos fãs da série e até já se imaginava no lugar deles. Resta saber se esse lugar é um sofá, religiosamente à hora ditada pelo canal, ou horas depois, a assistir a uma gravação. Ou uma cadeira frente ao computador.