Ex-funcionários da Efanor retomam fio do passado

Foi uma das maiores fábricas têxteis portuguesas. Teria feito 100 anos, não tivessem as fibras sintéticas ditado o anacronismo do algodão

a Dois homens conversam a um canto, indiferentes ao torvelinho em redor. Do interior de uma tenda branca, escapa-se a voz de Belmiro de Azevedo ampliada pelo microfone. Mais perto, homens e mulheres vestidos a preceito trocam exclamações quando esbarram com fotografias em formato A2 que exibem uma Efanor em todo o seu esplendor. Numa, o rei D. Manuel II passeia-se pelas instalações da fábrica. Noutra, centenas de mulheres de mãos dadas, bata e lenço na cabeça, formam um cordão humano. Estamos a 26 de Junho de 2007, ou seja, precisamente 100 anos depois da inauguração daquela que, com os seus três mil funcionários, foi uma maiores fábricas têxteis portuguesas. Criada no estertor da monarquia, na Senhora da Hora, em Matosinhos, a chamada "fábrica dos carrinhos" fechou em 1994. Mas nem por isso o centenário foi esquecido. A pretexto da efeméride, quase 500 antigos operários reuniram-se no dia 26, numa cerimónia presidida por Belmiro de Azevedo, que teve na Efanor o primeiro emprego. O empresário, que vai agora criar um condomínio habitacional nos terrenos da antiga fábrica (ver texto ao lado), dirige-se à multidão e vai questionando os presentes. "O Neiva ainda anda por aí? E a dona Marieta, a parteira? Foi ela que assistiu e ajudou ao parto do meu primeiro filho..."
Os dois amigos do canto, duas vidas moldadas pelas deslocações diárias à fábrica, lembram-se dessa e doutras histórias. "Trabalhei cá 42 anos. Fui afinador de teares como o meu pai. Entrei com 17 anos e cheguei a viver no bairro social da empresa, a pagar 160 escudos ao mês. E sem falhar nenhum dia. Sem querer ofender ninguém, agora dói a cabeça ou um dente e está-se logo a faltar ao trabalho", resume o mais velho. Chama-se Manuel Silva, tem 72 anos e um anel dourado nos dedos muito gastos. O homem a seu lado chama-se Agostinho Barros, tem 53 anos, e respeita-o como a um pai. "Este amigo matou-me muitas vezes a fome", justifica Agostinho, recordado do dia em que deixou a aldeia, na Póvoa de Lanhoso, para entrar na Efanor. Catorze anos e bolsos vazios, começou como aprendiz de afinador e dormia nas camaratas destinadas aos operários. "Ganhava 23 escudos ao dia. Se quisesse comer na cantina, pagava dez escudos e 50 centavos, mais os 25 tostões da camarata. Com o dinheiro que sobrava, só ia a casa nas férias e no Natal. E, quando a fome apertava muito, chegava a ficar o fim-de-semana todo na camarata porque barriga que não se movimentava tinha menos desgaste, percebe?"
Manuel Silva percebia-o e por isso insistia em oferecer-lhe sardinhas, alimentando uma amizade que perdurou muito para lá dos portões da fábrica. Foi também assim com Maria da Conceição. Durante 40 anos, trabalhou como bobinadora de fio na Efanor. Criou dois filhos na creche da empresa, cuja parteira, aliás, a ajudou a parir. "Em casa e de graça." Quando entrou, foi ganhar oito escudos por dia. "Comecei a fazer recados, mas fui subindo, e quando assinei o contrato de ir embora já estava nos 33 contos e 200", afirma esta mulher que, para a cerimónia, resgatou do fundo das gavetas o colar a imitar pérolas verdadeiras, casaco cor-de-rosa sobre saia florida. "Não é todos os dias que se revêem tantos amigos juntos", justifica.
Que o diga Judite Rosário Correia. Tem 69 anos, não consegue manter o equilíbrio se não for amarrada ao braço da antiga companheira de trabalho, mas fez questão de aparecer. "Naquele tempo, havia muita disciplina. Ainda há bocado vi aí um senhor que me fazia medo", aponta. Quem chegasse um minuto depois das 7h30 perdia a manhã. O segredo era ser pontual. E passar por cima da boca aberta da intrigalhada entre colegas, sobretudo ela que tinha encoberto uma gravidez incipiente para ser admitida. "Se dissesse que estava grávida, mandavam-me embora." Mas o medo não impediu Judite de aderir à greve de 1958, tinha Humberto Delgado sucumbido havia pouco às mãos da PIDE. "Dessa vez, não se atreveram a castigar-nos", recorda, a voz ainda em tom de desafio.
Olhar para as ruínas de um edifício onde se passou mais de metade da vida provoca dores no peito. É assim com Judite Rosário. É assim com Maria da Conceição. Com Manuel Silva e Agostinho Barros também. "As máquinas eram obsoletas e, na minha opinião, foi isso que levou a Efanor à falência", opina Agostinho. O antigo mestre afinador reforça a tese. "Já perto do final, decidiram comprar teares já com 12 anos à Têxtil Manuel Gonçalves, de Famalicão. Estavam sempre a avariar e, enquanto uma máquina nova tecia 20 metros numa hora, aquelas faziam um metro ou nem isso", recorda.
Na opinião de Belmiro de Azevedo, a insistência no algodão como matéria-prima de base acelerou a morte da empresa. "As fibras sintéticas já eram muito mais baratas e mais fáceis de aceder", sustenta, sublinhando que o algodão tinha um ciclo de vida demasiado demorado. "Passava-se quase um ano desde a cultura, muitas vezes em Angola e Moçambique, até à entrada na fábrica. Na altura, já havia moda que exigia respostas rápidas e materiais rapidamente adaptáveis." Foi essa convicção que o levou a despedir-se da Efanor, antes de decorridos dois anos desde que ali entrara com uma licenciatura em Química Industrial, em 1963. "Na altura, tinha eu 26 ou 27 anos, até se zangaram comigo, mas não valia a pena insistir." Regressou, sabendo da impossibilidade de pegar no fio do tempo no sítio em que ele quebrou.
A publicidade estava longe de ter o peso que tem hoje na escolha dos consumidores, mas nem por isso era desprezada pelas empresas. No caso dos fios de algodão fabricados na Efanor, tornaram-se conhecidos vários cartazes publicitários que procuravam evidenciar a resistência do fio. Num, duas raparigas atracam um barco à vela puxando-o com uma linha que resistia mesmo a um vento adverso. Noutro, uma mulher dominava à chicotada uma junta de bois que puxava um carrinho de linhas. Legenda: "Da aldeia para a cidade: a única fábrica portugueza [assim mesmo, com z] de carrinhos e linhas de algodão." Curiosidade: o algodão era produzido em Angola.
1907

A Efanor foi inaugurada no dia 26 de Junho deste ano, com 280 operários, que viriam a quadruplicar em quatro anos
1903
O empresário Delfim Pereira da Costa teve a ideia de lançar uma fábrica de carrinhos de linha de algodão para coser e bordar. A escritura de constituição da Empresa Fabril do Norte seria assinada dois anos depois.

1907A 26 de Julho é inaugurada a Efanor, com uma área de 40 mil metros quadrados, 280 operários, 6216 fusos, 47 teares e 250 contos de capital.

1908D. Manuel II visita a Efanor.

1911Afonso Costa, ministro da Justiça, visita a Efanor. Esta conta já com 1300 operários.

1927Manuel Pinto de Azevedo substitui Delfim Pereira da Costa e assume os destinos da Efanor. Três anos depois, João Mendonça e Luís Delgado dos Santos entram para o conselho de administração.

1942Aquisição da Fábrica de Fiação e Tecidos de Paleão, em Soure. É construído o bairro operário, constituído por 68 casas de várias tipologias.

1949Construção do edifício com camaratas para os operários deslocados.

1957Inauguração da central de maceração do linho de Paleão, em Soure. A Efanor tem três mil operários e uma creche com capacidade para 140 crianças.

1953Cedência de 5900 metros quadrados para a construção da Igreja da Senhora da Hora.

1963As instalações fabris na Senhora da Hora ocupavam já 77 mil metros quadrados. É inaugurada a cooperativa destinada aos operários para aquisição de bens alimentares e outros. A Efanor distribui pelos seus funcionários, a preço de custo, cerca de 1700 bicicletas e 70 motorizadas. Daí para a frente, a Efanor estancou os investimentos. Viria a fechar 31 anos depois.
a Foi a primeira fábrica a ter energia eléctrica em Portugal e só isso diz muito do pioneirismo que, durante várias décadas, caracterizou a Empresa Fabril do Norte, ou Efanor, como ficou conhecida.
Na zona em que se insere, na Senhora da Hora, concelho de Matosinhos, é difícil encontrar quem não tenha trabalhado ou pelo menos tido um familiar (ou vários) ao serviço daquela fábrica de "fiação, torcedura, tecelagem, carrinhos de algodão e outras manufacturas", conforme se lia nas letras gordas que acompanhavam a fachada do edifício. Este ficava estrategicamente localizado perto do porto marítimo de Leixões e da via ferroviária.
O facto de ter sido visitada quer pelo rei, D. Manuel II, em 1907, quer pelos republicanos que se lhe seguiram, na pele do revolucionaríssimo Afonso Costa, em 1911, atesta bem da importância estratégica da empresa não só para a região mas para o país.
Foi durante muitos anos a única a produzir fio de algodão, até então importado de Inglaterra. E a prova de que o país precisava desse fio foi que, em apenas quatro anos, passou de 280 para 1300 operários, responsáveis pela produção de fio com marcas como "Angola", "Porto", "Relógio" e "D. Afonso Henriques".
E apesar da política de baixos salários e do modelo de produção assente na exploração de mão-de-obra intensiva, e numa altura em que qualquer tentação grevista merecia condenação imediata, a Efanor destacou-se pela assistência médica e medicamentosa.
Além de uma parteira e um enfermeiro ao serviço dos operários, a fábrica possuía uma creche e jardim-de-infância com capacidade para 140 crianças, uma cantina abastecida por quinta própria (a chamada Quinta das Sedas, dotada de vacaria e pocilga) e um bairro operário com 68 casas. Tudo ao dispor dos funcionários, a preços pouco mais que simbólicos.
Possuía, além disso, um dormitório para operários deslocados, um complexo desportivo e uma biblioteca, e até um corpo próprio de bombeiros. Nos tempos áureos, chegou a distribuir bicicletas e motorizadas a preço de custo por alguns funcionários, cujos descendentes tiveram, noutros casos, direito a bolsas de estudo. Durou 87 anos.
a Leva a assinatura do arquitecto Alcino Soutinho e vai começar a ser construído já em Julho o primeiro de vários blocos de apartamentos que a Praedium, do grupo Sonae, projectou para os terrenos da antiga Efanor. O arquitecto portuense assina os primeiros 40 apartamentos, a dotar de áreas entre os 190 e os 437 metros quadrados e que deverão ficar concluídos no início de 2009.
A construção da "cidade Sonae" naqueles 12 hectares de terreno promete, porém, arrastar-se pelo menos até 2013, dividindo-se em seis fases. Ao todo nascerão naquela zona 700 apartamentos, susceptíveis de atrair mais de dois mil novos moradores. Servida pela rede de metropolitano, a Senhora da Hora já alberga um Continente, o centro comercial Norte Shopping, a Sonae Distribuição e a sede da Optimus, além de 530 apartamentos divididos entre os empreendimentos Quinta das Sedas e City Flats. Tudo com a marca Sonae, numa zona que futuramente deverá somar cerca de dez mil pessoas, entre habitantes e trabalhadores. É mais do que muitas cidades médias do país. Este projecto urbanístico, que custará à volta de 170 milhões de euros, contempla a criação, nas instalações sociais da antiga fabrica, de um colégio com capacidade para mais de 250 crianças do ensino pré-primário e primário a gerir pela própria Sonae. O estabelecimento deverá ter, segundo adiantou o próprio Belmiro de Azevedo, "alguma valência artística". E, ao mesmo tempo que visa dispensar alguns movimentos pendulares, o colégio serve ainda, pela sua localização, o intuito de recuperar "os valores tradicionais da vida em comunidade".
De resto, o projecto urbanístico contempla 50 mil metros quadrados de zona verde onde já foram criados vários percursos pedonais e um lago biológico, "onde a água se renova automaticamente como se fosse um rio", segundo Belmiro de Azevedo. No total, serão ali plantadas 450 árvores e 20 mil pés de bambu.
A recuperação do Parque Manuel Pinto de Azevedo, com complexo de ténis e um recinto polidesportivo, também está nos projectos.
Junto a este complexo, em terrenos que a Sonae cedeu à Câmara de Matosinhos, vai nascer uma extensão do Museu de Serralves. Orçado em 14 milhões de euros, este pólo museológico será financiado por fundos comunitários, pelo grupo Sonae, pela autarquia matosinhense e pela Junta Metropolitana do Porto. O respectivo concurso internacional de arquitectura já foi lançado, prevendo-se que abra as portas em 2010. Traduzirá um conceito museológico "inovador e único no mundo", como já sublinhou o presidente da Fundação de Serralves, Gomes de Pinho.
Dentro do novo edifício, ficarão guardados os espólios de Serralves e da Câmara de Matosinhos, uma área de exposições temáticas e um núcleo de conservação e restauro de obras de arte e um conjunto de indústrias culturais.
Numa área contígua, com 2500 metros quadrados, haverá um espaço reservado à memória da Efanor e da indústria têxtil, da responsabilidade da Fundação Belmiro de Azevedo. Ali deverão ser depositadas algumas peças que a Efanor havia cedido ao Museu da Indústria que esteve previsto construir-se na zona do Freixo, mas cujo projecto entretanto caiu por terra devido à cedência do Palácio do Freixo ao Grupo Pestana, que ali vai construir uma pousada de luxo.

170

milhões de euros é o investimento total da Praedium, empresa da Sonae Capital, especializada na promoção imobiliária residencial nas áreas de Lisboa e do Porto. Neste caso, o empreendimento urbanístico da Senhora da Hora vai abarcar 12 hectares de terreno antigamente afectos à Efanor

700

apartamentos vão nascer na zona, a dotar de 50 mil metros quadrados de verde que incluem um lago biológico, piscinas cobertas e percursos pedonais dotadas de 450 árvores
Os espaços verdes
já estão
relvados e dotados de árvores, um lago e 20 mil pés de bambus

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