Hatchepsut O Egipto descobriu a mais nobre das damas?
Um fragmento de molar foi a peça decisiva para a identificação da múmia de Hatchepsut, um dos mais importantes governantes do Egipto e das poucas mulheres que chegou a faraó. Um autêntico CSI Tebas permitiu aos arqueólogos resolver um mistério com a idade da egiptologia
a Durante mais de 100 anos ninguém lhe ligou nenhuma. A múmia de Hatchepsut permaneceu no pequeno túmulo do Vale dos Reis que pertenceu à sua ama. Ontem, a importante faraó da XVIII dinastia, que comandou os destinos do Egipto há 3500 anos, numa época de grande glória e prosperidade, voltou a reinar. Porquê? Porque Zahi Hawass, chefe do Conselho Supremo de Antiguidades Egípcias (CSAE), anunciou perante dezenas de jornalistas de todo o mundo que, depois de semanas e semanas de análises, podia afirmar, com "absoluta certeza", ter identificado a múmia da rainha.A identificação da múmia de Hatchepsut, que significa "a mais nobre das damas", "é uma das mais importantes descobertas da história do Egipto", disse Hawass na conferência de imprensa no Cairo, citado pela AFP. Para o arqueólogo, esta descoberta é a mais significativa desde que o britânico Howard Carter entrou no túmulo do jovem faraó Tutankhamon, em 1922.
O conjunto de análises (sobretudo de ADN), exames (os mais importantes com aparelhos de TAC), contextualizados pelas fontes históricas, são muito complexos e estão ainda a decorrer, com o financiamento do canal norte-americano Discovery (3,7 milhões de euros), para o qual Hawass está a fazer o documentário Secrets of Egypt"s Lost Queen.
O trabalho de arqueólogos, historiadores e cientistas é digno de um verdadeiro CSI Tebas, a necrópole de Luxor onde está o célebre templo funerário de Hatchepsut, Deir el-Bahari, como referia ontem o diário espanhol El País. O problema é que a rainha poderá nunca ter aí sido sepultada e acabou no túmulo da sua ama Sitre.
O próprio chefe do CSAE chegou a defender o ano passado, numa conferência no Museu Metropolitan de Nova Iorque, que a múmia agora identificada como Hatchepsut não podia pertencer, de modo nenhum, à rainha. Ontem, Hawass assumiu o erro e informou os jornalistas: a múmia da rainha, encontrada depositada no solo ao lado da que se supõe pertencer à sua ama, corresponde a uma mulher gorda, com os dentes muito estragados, que terá morrido com cerca de 50 anos e na sequência de um cancro nos ossos.
Mas nem todos os egiptólogos estão convencidos. "Esta análise arrisca-se a não servir de prova", diz Salima Ikram, professora da Universidade Americana do Cairo e uma das maiores especialistas mundiais em múmias. Luís Manuel Araújo, egiptólogo e professor da Faculdade de Letras de Lisboa, também diz ser "imprudente" o anúncio antes de todos os testes de ADN concluídos. "É muito prematuro falar sem que haja dados mais concretos. Os tempos da ciência não são os da arqueologia-espectáculo. A opinião pública que acompanha estas matérias pode ficar entusiasmada, até porque há uma ligação emocional a Hatchepsut, mas a ciência tem de ficar à espera."
A peça decisiva
A múmia de Hatchepsut e da sua ama foram descobertas por Carter, em 1903, num pequeno túmulo do Vale dos Reis (Tebas Ocidental), e posteriormente designado por KV60 (a sigla é de Kings" Valley).
A múmia que hoje se diz pertencer a Hatchepsut tinha o braço esquerdo cruzado sobre o peito - sinal de realeza, embora o mais comum seja os dois braços cruzados - e estava, tal como a outra, desnudada. Mas, por que razão foi esta múmia esquecida durante tanto tempo?
Ainda no começo do século XX, o KV 60 foi selado, sendo reaberto por Donald Ryan em 1989. Ryan é um dos que diz que ainda falta muito para que se possa dizer, sem sombra de dúvida, que se trata de Hatchepsut: "São ainda muitas as possibilidade de identificação", defendeu num fórum de discussão na Internet, citado pela Reuters. Em 1989, a múmia da suposta ama foi levada para as reservas do Museu do Cairo e a desconhecida a seu lado foi deixada no túmulo, sendo removida apenas o ano passado.
A múmia que durante anos ficou esquecida nas reservas do museu integrou o projecto de Hawass financiado pelo Discovery Channel que se propõe estudar múmias femininas não-identificadas.
A "prova decisiva", segundo Hawass, no caso de Hatchepsut, foi o fragmento de um molar superior encontrado em 1881 numa caixa de madeira com o nome da rainha inscrito, junto a uma série de múmias reais guardada no templo de Deir el-Bahari. Foi o dentista Yehya Zakariya que descobriu que o referido fragmento de molar, que terá sido retirado durante o processo de embalsamamento, encaixava na perfeição num dos espaços do maxilar superior da múmia.
Aos que o acusam de ter anunciado prematuramente a identificação de Hatchepsut, Hawass responde, seguro: "A identificação do dente com o maxilar mostra que esta é Hatchepsut. (...) Um dente é como uma impressão digital."
Além do molar, o director do CSAE cita com frequência os dados das análises, ainda preliminares, do ADN.
A equipa que está a estudar a múmia no laboratório que o Discovery montou junto ao museu garante que os estudos vão continuar e, no seu site, os responsáveis pelo Discovery são mais contidos no seu entusiasmo que Hawass. Apesar de referirem que os primeiros dados apontam para semelhanças do ADN desta múmia com o da de Ahmes Nefertari, bisavó de Hatchepsut e mulher do fundador da 18ª dinastia, Ahmes, garantem estar à espera de "provas mais concludentes".
Os testes de ADN são complexos e o facto de Hawass ter avançado com esta identificação sem ter concluído todas as análises leva alguns especialistas a criticá-lo. "Tem de se ser muito cuidadoso a tirar conclusões deste tipo de provas", disse ao diário norte-americano New York Times a egiptóloga Kathryn Bard, da Universidade de Boston. Bard disse, no entanto, que não é surpreendente que o corpo de Hatchepsut fosse encontrado num túmulo humilde como o KV 60, já que o seu enteado "tentou destruir todos os sinais do seu reinado".
"Obter ADN de uma múmia é um processo muito complexo", disse à Associated Press o biólogo Scott Woodward. "Para defender uma relação [da múmia de Hatchepsut com outras] é preciso o ADN de outros indivíduos para fazer uma comparação de sequências."
Uma obsessão
Pode dizer-se que Zahi Hawass está obcecado com a ideia de encontrar as três rainhas mais importantes do Egipto: Nefertiti, Cleópatra e Hatchepsut. Ontem, o chefe do CSAE ficou uma rainha mais perto de atingir o objectivo ao ter identificado a maior de todas elas, Hatchepsut, a única das três que, na realidade, foi rei. Confuso? O egiptólogo português Luís Araújo explica: "Hatchepsut foi a única que reinou como faraó. Nefertiti foi importante, mas era rainha enquanto mulher de Akhenaton. Hatchepsut era o líder incontestado do Egipto, no período de maior glória e prosperidade da civilização. Era um faraó notável, que reinou durante cerca de 20 anos. Não é por acaso que o seu túmulo é no Vale dos Reis e não no das Rainhas."
Filha de Tutmés I, Hatchepsut casou com o meio-irmão, Tutmés II, e assumiu a regência do Egipto porque o seu enteado, Tutmés III, não tinha ainda idade para o fazer. Mas Hatchepsut gostou demasiado do poder e acabou por lhe usurpar o trono, o que provavelmente explica a teoria, ainda não provada, de que Tutmés III terá contribuído para o seu desaparecimento e ordenado que fossem destruídas todas as suas estátuas e representações. Nelas, Hatchepsut surge sempre com a iconografia própria de um faraó: um turbante de pano (ou uma de várias coroas), uma barba postiça (um atributo divino), um saiote com uma cauda de touro, e o peito descoberto.
"Hatchepsut é a prova de que a civilização faraónica é a única das pré-clássicas em que a mulher desfrutou de um respeito, de uma veneração e de um poder que, nas restantes, era exclusivo do homem", diz Luís Araújo. "Ela não foi só uma mulher faraó, ela foi um competente faraó, governando num período de grande requinte, bem-estar e cosmopolitismo." Os textos da época retratam-na como o timoneiro firme, reinando "como se o Egipto fosse um barco conduzido por entre as águas ameaçadoras do caos".
Hawass, que continua à procura de Nefertiti depois da recente e mal sucedida colaboração com a egiptóloga Joanne Fletcher e que garante estar a escavar o túmulo de Cleópatra nos arredores de Alexandria, diz que Hatchepsut foi encontrada. Será?