O Surfista Prateado
a O Surfista Prateado é o Kierkegaard dos super-heróis. Agora que estreou um filme muito medíocre com o Surfista, vale a pena resgatar a sua genialidade.The Silver Surfer, umas das criações predilectas de Stan Lee (texto) e Jack Kirby (desenho), apareceu pela primeira vez em 1966, no número 48 da revista Fantastic Four, da Marvel Comics. A estreia a solo aconteceu no ano seguinte, e depois houve uma revista com o seu nome, desenhada por John Buscema. Os dezoito números dessa série inicial estão recolhidos no volume The Essential Silver Surfer (1998).
As aventuras do Surfista são menos interessantes do que a sua fascinante situação existencial. Norrin Radd era um astrónomo no planeta Zenn-La, civilização avançada que tinha atingido o conhecimento e a felicidade total. Mas Norrin continuava um espírito inquieto, que desejava aventuras e descobertas, coisas que fossem conquistadas e não oferecidas. Ninguém entendia este inadaptado, nem sequer a sua namorada, a belíssima morena Shalla-Bal.
Um dia, chega à órbita de Zenn-La o terrível Galactus, um gigante que se alimenta da energia cósmica dos planetas. Norrin Radd, corajoso, pede a Galactus que poupe Zenn-La; em troca, diz que se oferece como batedor planetário do gigante. Alguém que atravesse eternamente o universo em busca de fontes de energia. Galactus aceita a proposta, e transforma Norrin numa criatura prateada, indestrutível, com uma prancha voadora que transmite poderes cósmicos.
De início amoral, o Surfista redescobre a compaixão quando chega à Terra. Uma vez mais, ele impede que Galactus destrua um planeta. Galactus condena então o Surfista a um exílio perpétuo, criando uma barreira invisível que ele não consiga nunca ultrapassar. Salvando a Terra, na qual aliás foi mal recebido, o Surfista fica assim eternamente preso a este planeta. E eternamente afastado da sua casa e da sua amada.
Como vêem, isto não é um simples entretenimento adolescente. Estes temas vêm numa longa linha de angustiados que vai da Bíblia (Job) às parábolas de Kafka. No universo específico da ficção científica, talvez só Stanislav Lem ou Philip K. Dick tenham criado personagens assim. A maioria dos heróis da constelação Marvel são experiências científicas que correram mal, vítimas de acidentes e mutações, criaturas mitológicas ou gente desdobrada no seu lado luminoso e sinistro. O Surfista Prateado é muito mais que isso. Ele representa a insatisfação cósmica, o sacrifício, o exílio, a compaixão frustrada. Norrin já tinha uma dimensão introspectiva e interrogativa em Zenn-La, quando não aceitava um paraíso sem mérito; depois, preso à esfera terrestre, o Surfista vive o desespero dos exilados, a condição de herói trágico, alma penada, errante cósmico com poderes imensos e um imenso vazio. Por isso ele se atira uma e outra vez contra uma barreira que sabe que não ultrapassa, contra a imagem nunca esfumada de Shalla-Bal, contra a saudade dos seus, contra a sua omnipotência infeliz.
Eis uma junção de alguns dos seus monólogos: "No mundo todo não há nenhum sítio para mim. Exilado aqui, no planeta Terra, sou um estranho entre estranhos. Um estrangeiro entre a raça dos homens. Consigo suportar as forças hostis da natureza, ou mesmo a dilacerante angústia da solidão eterna, mas não aguento os acessos incompreensíveis da loucura humana. Não posso ficar aprisionado num mundo sem razão. Tem de haver uma fuga. Tem de haver uma maneira de alcançar a tranquila plenitude do espaço. Ou então, que conheça a morte, em vez desta vida sem sentido. Quanto mais tempo tenho de ser um prisioneiro no selvagem planeta Terra? Quanto tempo antes que a solidão me destrua? Este não pode ser o meu destino eterno. Não foi para isto que renunciei à minha terra, à minha vida, ao meu amor. Sou odiado e temido pelos mesmos humanos que o meu coração quer ajudar. Eu disse o meu coração? Como pode ser isso, se eu não tenho coração?"
Isto é Kierkegaard. Em livrinhos de aventuras em papel barato que custavam 25 cêntimos.