A geometria de Euclides em azulejos portugueses

Quem os mandou fazer queria difundir os teoremas euclidianos nos séculos XVII e XVIII. Dizem que não há outros iguais no mundo ou,
se existirem, são da mesma colecção. Alguém sabe onde estão?

a Esta história tem como personagens principais 21 azulejos portugueses e muito mistério, acasos felizes, pistas, descobertas. De onde vieram? Em que data foram feitos? Ninguém sabe ao certo. Mas o que se apurou entretanto permite dizer que não deve haver outros iguais. Não têm flores, nem animais, nem outros elementos figurativos; antes motivos de ciência. Mas azulejos decorativos com motivos de ciência há vários, por exemplo na Universidade de Évora. A particularidade destes 21 azulejos dos finais do século XVII, inícios do século XVIII, como se descobriu entretanto, é que têm ilustrações científicas para fins didácticos. Mostram figuras geométricas do livro Os Elementos, escrito por Euclides 300 anos antes de Cristo.
O último capítulo desta história é uma exposição na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, onde podem contemplar-se 14 dos azulejos, até 28 de Setembro.
Um artigo de jornal
Uma parte crucial do enredo remonta a Novembro de 1982, quando o coleccionador Francisco Hipólito Raposo publicou um artigo no semanário Expresso, com título O mistério dos azulejos didácticos. Foi este coleccionador de antiguidades, desenhador e colaborador de vários jornais, já falecido, quem terá divulgado pela primeira vez a existência de tais azulejos. Atribuiu-lhes a designação de "didácticos", razão por que dizia terem "excepcional interesse".
Francisco Hipólito Raposo já concluía que reproduziam figuras de Os Elementos, de Euclides, um dos grandes matemáticos gregos, cuja geometria vigorou durante 2200 anos.
Traçava também o rasto dos azulejos conhecidos, quase uma dezena: dois tinham sido oferecidos ao próprio Francisco Hipólito Raposo; outros dois pertenciam ao espólio do Museu de Arqueologia e Etnologia, em Lisboa; três estavam no exterior de uma vivenda na zona do Estoril; e outros dois encontravam-se no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra.
Porém, a sua verdadeira origem escapava ao coleccionador, que perguntava se não haveria perdidos por aí mais azulejos. "Saber-se-á um dia a sua verdadeira história?"
Livros que datam cerâmica
Deu-se o acaso de António Pacheco ter visto esse artigo, longe de imaginar que tal leitura iria contribuir para chegar mais perto da verdadeira história dos azulejos. Era funcionário na biblioteca de um laboratório científico, mas mudou para o Museu Nacional Machado de Castro, em 1989. Haveria de se cruzar com os azulejos e lembrar-se do que lera anos antes. "Relacionei-os com o artigo do Expresso, mas não com a obra de Euclides", conta António Pacheco.
Os fios da meada que se puxaram a partir daí permitiram descobrir que, afinal, havia no museu 14 azulejos com figuras matemáticas. Estão agora na exposição Azulejos que ensinam.
Já no final dos anos 90, António Pacheco e uma colega do museu tentaram saber mais coisas. Procuraram um matemático da Universidade de Coimbra: aí, António Leal Duarte conseguiu identificar a edição exacta de Os Elementos de onde se retiram as imagens para os azulejos, uma vez que houve inúmeras versões que reescreveram, acrescentaram e comentaram esta obra. Trata-se da versão publicada pelo jesuíta e matemático belga André Tacquet em 1654, com grande divulgação em edições e traduções, nos séculos XVII e XVIII, em português, alemão, italiano e grego moderno.
"Nas edições da obra de Tacquet que pude observar, as figuras do livro coincidem quase ao milímetro com as figuras dos azulejos", resume António Leal Duarte, no catálogo da exposição. "A identificação da edição correcta é que permite concluir com rigor que os azulejos são jesuítas, pois, para além de Tacquet ser jesuíta, a edição dele é a que foi adoptada para o ensino dos jesuítas", sublinha a comissária da exposição, a matemática Carlota Simões, da Universidade de Coimbra.
Mas por que é que alguém se daria ao trabalho de pôr em azulejo as figuras geométricas de Euclides? Porque os jesuítas queriam promover o ensino da Matemática em Portugal, pelo que se depreende das instruções enviadas pelo superior-geral da Companhia de Jesus, Tirso González: em 1692, recomendou o uso da edição de Tacquet e a exposição das figuras na sala de aulas; no ano seguinte, que os exames fossem feitos perante as figuras. Seriam os azulejos o PowerPoint daqueles tempos?
Para António Leal Duarte, foram, de facto, uma resposta a essas instruções de Tirso González. "O objectivo não seria tanto o uso numa aula (poderiam nem estar numa sala de aula), mas habituar o estudante a conviver diariamente com estas figuras, a memorizá-las."
O seu tamanho invulgar (20 centímetros de cada lado, enquanto o formato usual era de 13,5 centímetros) reforça a ideia de que se pretendia que fossem fáceis de ler. "Eram mesmo ilustração científica. Eram mesmo a representação de figuras com fins didácticos, não estéticos. Neste momento, podem considerar-se quase objectos de arte", diz Carlota Simões.
Com a junção destas pontas, já se pôde concluir que o seu fabrico é posterior a 1654, porque reproduzem as figuras da versão de Tacquet de Os Elementos. E alguns factos históricos garantem que não são de uma época muito posterior: os jesuítas foram expulsos pelo marquês de Pombal (em 1759) e a reforma pombalina do ensino e da universidade (em 1772) adoptou outra edição (de 1756) de Os Elementos. Sendo assim, os azulejos só podem ter sido fabricados depois da edição de Tacquet e antes da expulsão dos jesuítas ou, pelo menos, antes da escolha de outra edição do famoso livro de Euclides. "As figuras são diferentes das da versão de Tacquet e os azulejos deixariam de ter utilidade. Teriam de ser retirados da vista dos estudantes, se é que alguma vez estiveram", diz António Leal Duarte.
Quando eram didácticos, onde teriam estado? O mais provável, diz o matemático, é que provenham de uma escola da Companhia de Jesus (Coimbra, Lisboa ou Évora), - "e, de entre estas, ainda como mais provável, do Colégio das Artes de Coimbra". Certezas não há.
Atrás da pista da moradia
Para preparar a exposição, Carlota Simões quis localizar os outros azulejos dispersos pelos vários sítios. Seguiu as pistas de há 25 anos, de Francisco Hipólito Raposo.
Dois continuam a pertencer ao Museu de Arqueologia, embora estejam depositados no Museu Nacional do Azulejo. A incógnita era se os da fachada na vivenda no Monte Estoril teriam resistido, porque, dizia o coleccionador em 1982, a casa era um infantário. A morada vinha no artigo, até o nome da vivenda (Vila Sara) - restava saber se ainda existia.
É de um alemão, que a comprou em meados dos anos 80. Quem a vendeu a Werner Hugemann mostrou-lhe o artigo de Francisco Hipólito Raposo, por isso o alemão quis preservar os azulejos. "Estavam muito maltratados. Agora estão emoldurados dentro de casa", diz Hugemann. E reproduzidos no catálogo da exposição.
Dos 21 azulejos conhecidos, só os que eram do coleccionador estão em parte incerta. "Temos três armazéns com grande quantidade de material. Não faço ideia onde estão", diz um dos filhos, Vasco Hipólito Raposo.
Quem tiver agora mais informações pode escrever os próximos capítulos desta história. Talvez se localizem os dois azulejos do coleccionador. Ou talvez se encontrem outros ainda. Afinal, Os Elementos tinham cerca de 500 figuras geométricas, como pode constatar-se nas edições antigas da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, ao lado dos azulejos. Se todas as figuras tiveram direito a azulejo, onde estão eles?
A partir das 15h de hoje, os azulejos com figuras euclidianas e o ensino das ciências antes da reforma pombalina estarão em discussão no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra, no âmbito da exposição Azulejos que ensinam. Desta universidade falarão o arquitecto Rui Lobo, sobre o Colégio das Artes da Companhia de Jesus, em Coimbra; o matemático
António Leal Duarte, sobre os azulejos com as figuras de Euclides e a sua relação com o ensino das ciências pelos jesuítas; e o físico Décio Martins, sobre as personalidades da ciência
em Coimbra, antes da reforma de Pombal. O historiador da ciência Henrique Leitão, da Universidade de Lisboa,
falará do ensino das ciências pelos jesuítas em Portugal e no mundo. Os azulejos euclidianos estão expostos a três passos do museu, na biblioteca da universidade, mas ali estão também outros seis azulejos científicos, com motivos de astronomia e hidráulica, do Museu Machado de Castro.
Não se sabe sequer de que
livro foram reproduzidos.

Sugerir correcção