Auschwitz
a Não estamos preparados. Vimos mil vezes essas imagens, os falsos chuveiros, as malas dos judeus com os nomes escritos como se mais tarde as recuperassem, conhecemos as torres de vigia sobre o arame farpado electrificado, a contagem dos prisioneiros que demorava uma eternidade e ninguém se mexia, já vimos os cadáveres empilhados, os braços tatuados com um número de identificação, sabemos que uma pequena orquestra tocava música civilizadíssima da civilizadíssima Alemanha. Mas não estamos preparados. Basta a experiência de passar por debaixo da entrada com aquela ironia selvagem ("o trabalho liberta") e tudo o que vimos e lemos parece pouco comparado com aquilo de estarmos ali, no sítio do massacre, no colapso das ideias civilizadas das nações civilizadas.Visitei Auschwitz por impulso, sem que o tivesse planeado. É tão perto de Cracóvia, onde eu estava instalado, que não consegui evitar. Não sabemos nada de nada sem passarmos por Auschwitz. Nada sobre a humanidade e a civilização. Éramos, para todos os efeitos, turistas, num museu, com postais e o mais. Mas não senti em Auschwitz aquilo a que alguns energúmenos chamam "shoah business". Vi apenas o memento de um descarrilamento da razão causado pela razão.
Como muitos têm notado, o que assusta em Auschwitz não é apenas o genocídio mas a sua sofisticada programação. Auschwitz, mais o campo geminado de Birkenau e os outros quarenta campos associados eram uma fábrica. Uma fábrica de trabalho e de extermínio. Os judeus, trazidos num raio de milhares de quilómetros, de Lyon a Salónica, chegavam em comboios ao antigo aquartelamento do exército polaco. Um outro campo, muito mais tosco, com trezentos barracões de madeira, foi construído mais tarde, pois havia excesso de prisioneiros em Auschwitz. À chegada, um médico separava os sãos dos débeis. Os pertences eram confiscados e amontoados. Os mais frágeis eram encaminhados para as câmaras de gás, nus, apertados e em pânico, e depois os SS despejavam Zyklon B nas condutas. Os presos que sobreviviam à triagem eram assinalados muito organizadamente com símbolos (judeu, polaco, comunista, cigano, homossexual). E tudo o mais era meticulosamente organizado, desde os fuzilamentos até às experiências científicas que tornavam adultos e crianças numas esqueléticas cobaias, passando pelos elevadores que levavam os corpos para o crematório. Em Auschwitz há salas e mais salas com o que ficou das vítimas: sapatos e óculos, pentes e pincéis da barba, próteses e relógios de pulso. E os cabelos das mulheres e os dentes de ouro derretidos, tudo material aproveitável pela indústria de guerra ou pelos bancos do Reich.
A nossa guia, com sessenta anos e baixinha, tinha os olhos esbugalhados mais assustados e tristes que já vi. No seu inglês aproximativo, explicava o que os prisioneiros comiam (de madrugada uma espécie de café aguado, ao almoço uma espécie de caldo, ao jantar um naco de pão), explicava os trabalhos forçados de escavar e construir, explicava a brutalidade dos castigos físicos, a cela minúscula onde ficavam quatro homens em pé, os presos que disputavam os beliches mais altos para evitar os ratos e as baratas, explicava os registos detalhados, o percurso tão organizado dos comboios entre os campos, explicava os pequenos rituais e solidariedades, explicava que os SS construíram piscinas e bibliotecas e traziam as esposas e eram (sem ironia) amantíssimos esposos e pais de família.
Atravessamos os corredores com algumas fotos de prisioneiros, tiradas nos primeiros anos do campo, antes de se esgotar a película fotográfica. Imagens patibulares, num preto e branco cheio de cinzentos, mulheres e homens magros, assustados ou inexpressivos, o cabelo rapado, o nariz e as orelhas a dominar o rosto afilado. Aguentavam no máximo uns sete meses. Os que sobreviveram ao fim da guerra, escondiam ainda debaixo do colchão os pães que lhes davam, gesto automatizado em anos de escassez.
Atravessámos os corredores e eles olhavam para nós, os civilizados.