Soberania Alimentar

O ritual da Soberania Alimentar, grupo de gourmets que se juntam todos os meses para um jantar-concurso, começa no momento exacto em que os primeiros convidados chegam à grande casa carregados de cestos, panelas e caixas cuidadosamente transportados por conterem molhos extraordinários, temperos raros e pratos que precisam de acabar de ser cozinhados.À medida que vão chegando, vão entrando para a enorme cozinha onde o calor e o cheiro de forno indica que alguma coisa também já começou a ser preparada em casa.
A chegada dos convidados é animada pela troca de cumprimentos, pela surpresa de rever amigos e conhecidos, mas também pela naturalidade com que se apresentam os que ainda não se conhecem. As apresentações fazem-se num misto divertido de escolha de vinhos, de bebidas que se preparam e oferecem e ainda de espreitadelas curiosas para ver quem traz o quê. Tudo feito com alegria e cumplicidade, mas também a certeza de existir ali um desafio para vencer.
Com gestos cuidadosos para que nada perca a frescura ou o ponto de cozedura, cada um distribui aquilo que traz pelos diversos cantos da cozinha. Um equilíbrio delicado, este de pôr no frigorífico o que é para manter fresco, deixar no congelador o que deve permanecer gelado e, ao mesmo tempo, cuidar dos tempos de forno, das frituras, dos refogados e das coisas de panela em lume com intensidades diferentes. O que é de lume brando deve tardar, o que é de grandes chamas não se pode deixar passar. Tudo feito numa dança permanente, numa espécie de bailado cuidadosamente ensaiado, onde todas as pessoas se cruzam atarefadamente com uma inteligência e uma delicadeza surpreendentes, sem nunca chocarem, nem deixarem de dizer as suas graças sobre o ombro dos outros.
Faz parte do ritual levantar suspeitas e haver picardias. Trata-se de um encontro gastronómico de grandes gourmets de todas as idades, mas também de um concurso. Existe um júri e, no fim do jantar, alguns dos convidados serão expulsos, apesar de terem cozinhado coisas sumptuosas. Isto, para poder dar a oportunidade a que outras pessoas possam aceder a este ritual, de forma a manter o grupo aberto à novidade e elevar os desafios a patamares cada vez altos. A regra é esta e é cumprida com extraordinária devoção.
Embora a cozinha esteja cheia de pessoas debruçadas sobre pratos diferentes, cozinhados em tempos diferentes, tudo permanece em ordem. Não há caos nem desarrumação, apenas uma mistura de calor, cheiros e conversas que evoluem à medida dos cozinhados.
Os vinhos são uma escolha sábia e o arranjo das travessas revela uma criatividade sem limites. A mesa, onde cabem mais de 20 pessoas sentadas, é posta de forma sóbria e elegante para que as cores, os perfumes e os sabores dos pratos e vinhos possam ser o centro de tudo. O momento em que as travessas são pousadas no aparador encostado à parede que corre ao longo da mesa é incrivelmente cinematográfico. As romãs muito maduras abertas ao meio para dar cor e sabor ao gigot sept heures, as folhas de hera fresca colhidas no jardim para enfeitar um sassate, ou a hortelã perfumada colocada no centro de um cordeiro de leite com favas bebé são apenas alguns detalhes impressivos num quadro composto com extremo rigor e bom gosto.
No fim desta espécie de orgia gastronómica há vencedores e vencidos, mas uns e outros aceitam as pontuações, os comentários e as expulsões. Afinal a Soberania Alimentar é uma tertúlia de gourmets que sabem que é sempre possível melhorar a perfeição.

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