Esta mulher desafiou a indústria química e fundou o ambientalismo moderno
A ecologista pôs o mundo a pensar como os pesticidas podem ser prejudiciais.
Hoje é Dia Mundial do Ambiente
a Há 100 anos, quando a ecologista norte-americana Rachel Carson nasceu, o ambiente estava longe de inspirar uma preocupação global. Em 1964, quando morreu com um cancro, estava em marcha uma das mais importantes revoluções do pensamento ambientalista mundial.Se há um nome que se pode associar a este movimento na história das mentalidades, é o de Rachel Carson. E, se há um ponto marcante a apontar na superfície dos acontecimentos, é o do lançamento do livro Primavera Silenciosa, em 1962, em que Carson descreve como os pesticidas estavam a poluir o ambiente e a comprometer a vida de animais e plantas.
O papel de Rachel Carson é visto como tão relevante que o centenário do seu nascimento está a ser celebrado há meses nos Estados Unidos, com um programa que se prolonga até ao fim do ano. Conferências científicas, sessões públicas, cerimónias de homenagem, festivais, actividades para crianças e até peças de teatro, em vários pontos do país.
Ambiente e crítica social
Carson nasceu a 27 de Maio de 1907 em Springdale, Pensilvânia. A sua carreira esteve dividida entre a investigação em zoologia e a divulgação científica. Carson estabeleceu cedo uma ligação entre as duas ao ingressar, em 1936, no Departamento de Pescas e Natureza, do Governo norte-americano, tornando-se editora chefe de todas as publicações daquele organismo. Mesmo antes, já produzia programas de rádio e escrevia sobre história natural para o jornal Baltimore Sun, recorda a biógrafa Linda Lear, no site www.rahcecarson.org.
Carson tornou-se conhecida muito antes de Primavera Silenciosa. Os seus livros de divulgação científica sobre o mar, especialmente The Sea Around Us (1952) e The Edge of the Sea (1955), projectaram o seu nome para além do universo académico.
Mas foi a obra Primavera Silenciosa que a lançou numa espiral pública incontrolável. O título do livro remetia para uma alegada redução nas populações de aves, devido ao aumento vertiginoso da utilização de pesticidas. "As manhãs estão estranhamente silenciosas, quando antes estavam preenchidas com a beleza do canto das aves", escreveu Rachel Carson. "É uma Primavera sem vozes."
O livro foi muito além da mortalidade das aves e mostrou como a cadeia da vida pode ser modificada por alterações num dos seus elos, com impactos até ao topo, onde está o ser humano. "Se Primavera Silenciosa fosse resumida a uma única ideia, esta seria a de que na natureza nada existe de forma isolada", escreveu a investigadora norte-americana Patricia Hynes, no seu livro The Recurring Silent Spring (1989).
Primavera Silenciosa é também tomada como precursora de novas abordagens às preocupações ambientais, até então centradas sobretudo na protecção da natureza e, naquela altura em particular, na segurança nuclear. "O livro introduziu o tema da crítica à sociedade técnico-científica", diz Viriato Soromenho Marques, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. "É uma reflexão crítica aos limites da ciência", completa.
A batalha dos pesticidas
Lançado em 1962, o livro teve um impacto brutal. Em 1963, Rachel Carson depôs perante o Congresso norte-americano, sugerindo a adopção de medidas de protecção da saúde contra problemas ambientais. Nessa altura, o livro já estava traduzido em 14 países.
No ano seguinte, já 40 estados norte-americanos tinham adoptado leis para controlar o uso de pesticidas. O Presidente John Kennedy encomendou um estudo com recomendações sobre tema e, dez anos depois de Primavera Silenciosa, o DDT (pesticida desenvolvido após a Segunda Guerra Mundial para combater os mosquitos que causam malária e tifo) foi banido nos Estados Unidos.
Para o seu sucesso, o livro de Rachel Carson beneficiou do alcance da comunicação social. Uma primeira versão condensada foi publicada antecipadamente na revista The New Yorker. "O primeiro excerto gerou uma onda de cartas para congressistas, jornais, agências governamentais e para a autora. Foi alvo de mais de 50 editoriais e 20 colunas nos jornais", recorda Patricia Hynes.
Ao mexer nos interesses da poderosa indústria química, Carson foi vivamente atacada. O livro foi classificado como alarmista e pouco fundamentado. Tentou-se inclusive evitar a sua publicação.
Rachel Carson foi até acusada de atacar a indústria motivada pela luta que já travava contra um cancro da mama, que a mataria em 1964. O movimento organizado de contestação chegou a ser comparado ao que Charles Darwin enfrentou com o seu A Origem das Espécies, que pôs em xeque, em 1859, a teoria da criação divina da vida na Terra.
Ainda hoje, na celebração do seu centenário, Rachel Carson é criticada, sobretudo por ter ajudado a banir o DDT, que foi um insecticida central no combate à malária em todo o mundo. "Milhões de pessoas, literalmente milhões de pessoas, morreram em virtude da proibição do DDT, como resultado daquele livro", disse o senador republicano Andrew Harris, durante uma sessão parlamentar em Março passado, citado pelo Washington Post.
Depois da publicação de Primavera Silenciosa houve uma visível aceleração das preocupações públicas com o ambiente. Este movimento culminou, nos Estados Unidos, com a criação da Agência de Protecção Ambiental e do Dia da Terra, ambos em 1970. Na Europa, 1970 foi o Ano Europeu da Conservação da Natureza. E 1972 foi marcado pela Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo. "Foi uma fase de ascensão do ambientalismo moderno", diz Viriato Soromenho Marques.
Rachel Carson não foi a primeira expoente ambiental dos Estados Unidos. Antes dela, o naturalista John Muir (1838-1914) e os cientistas Gifford Pinchot (1865-1946) e Aldo Leopold (1887-1948) notabilizaram-se pelo pioneirismo na conservação da natureza.
No mesmo ano de Primavera Silenciosa, outro livro já tinha apontado o dedo aos químicos utilizados indiscriminadamente na agricultura - Our Synthetic Environment, de Murray Bookchin -, mas sem o mesmo sucesso.
Rachel Carson morreu a 14 de Abril de 1964, sem ver o legado que deixaria no futuro, que muitos associam à génese do pensamento ecologista contemporâneo. Viriato Soromenho Marques concorda: "Ela merece ter a distinção de fundadora do novo ambientalismo."