Gilles Lipovetsky Inventar uma pedagogia das paixões
O conhecido filósofo francês, autor de livros como A Era do Vazio e A Felicidade Paradoxal, falou ontem em Lisboa sobre o futuro da felicidade nas nossas sociedades hiper-consumistas
a Um pouco à maneira do célebre quadro de Magritte, que mostra um cachimbo para negar imediatamente essa realidade com a legenda "Ceci n"est pas une pipe", Gilles Lipovetsky pintou ontem um quadro daquilo a que chama "felicidade paradoxal" para acrescentar logo a seguir: "Isto não é a felicidade".O que é essa felicidade paradoxal que não é felicidade? Tem a ver, segundo o conhecido filósofo francês - que falava na conferência "Em Busca da Felicidade", que hoje termina na Culturgest, em Lisboa - com um fenómeno que se desenvolveu nas últimas décadas nas sociedades ricas: o "hiper-consumo". Ao passo que nos anos 50, as famílias tinham apenas um televisor, um carro, um telefone, hoje "as práticas de consumo obedecem a uma personalização desmesurada do espaço e do tempo", diz Lipovetsky. Cada um de nós, seja qual for a sua classe social e a sua idade, quer ser livre de navegar na Internet, de telefonar aos amigos ou de pegar no carro quando lhe apetece e para fazer o que lhe apetece. "Isto não significa que as classes sociais tenham desaparecido", explica Lipovetsky, "mas os modelos, as culturas de classe, essas sim desapareceram".
Assim, ao passo que nos EUA dos anos 50 as pessoas compravam coisas por uma questão de standing, de status social, de diferenciação social, hoje em dia instaurou-se no Ocidente uma igualdade sem precedentes perante o altar do consumo. E isso virou do avesso a atitude das pessoas perante a vida, destabilizando-as e tornando-as inseguras.
"Acho que já não vivemos no modelo do standing", diz Lipovetsky. "Ir de férias, comprar um iPod ou um computador já não constituem uma demonstração de riqueza. Os motores do consumo são a satisfação de desejos privados, hedonísticos, lúdicos, comunicacionais, experienciais. Queremos sentir, queremos sentir-nos melhor".
O direito a ser feliz
Esta nova forma de consumo - hedonística, hiper-individualista, imediata, materialista - criou, segundo Lipovetsky, uma série de paradoxos que têm tido um impacto considerável sobre a nossa concepção da felicidade. "Embora o hiper-consumidor se encontre cada vez menos sob o controlo de uma cultura colectiva de classe, está cada vez mais dependente do mercado ao nível das suas satisfações quotidianas", diz Lipovetsky. "Hoje em dia, somos livres de escolher as nossas actividades de lazer, mas estamos cada vez mais sob o império da oferta comercial. Somos livres ao nível dos pormenores, mas o mercado ganhou um poder sem precedentes na vida de cada um e sobre a maneira de concebermos a felicidade em termos do dia-a-dia. Neste dilúvio de convites a desfrutar da vida, a distância entre a felicidade que nos é prometida e o real, o quotidiano, é cada vez maior. E essa glorificação da felicidade provoca problemas existenciais".
Para mais, diz Lipovetsky, "quando existe um défice de consumo, nomeadamente por razões monetárias, é difícil sentir-se em fase com o resto da sociedade. Cada um pensa ter o direito de ser feliz, o direito à satisfação integral das suas necessidades. E quando achamos que passamos ao lado das coisas, gera-se em nós um grande sentimento de amargura". Como se estivéssemos a falhar a nossa vida - e como só temos uma, esse aparente fracasso torna-se ainda mais insustentável.
"Abandonado a si próprio, numa sociedade hiper-individualista, o indivíduo hiper-moderno é frágil", declara Lipovetsky. O problema mostra-se claramente quando consideramos que, apesar de vivermos mais anos, com mais saúde e com melhores condições materiais - com uma liberdade sexual quase total, podendo escolher se casamos ou não, se vamos ter filhos ou não - "nunca houve tantos casos de depressão (aumentaram sete vezes em 20 anos), tantas perturbações do comportamento, tantas tentativas de suicídio, tantos divórcios, tanta solidão".
Todavia, não devemos "diabolizar" o hiper-consumo, tornando-o totalmente responsável pelo nosso mal-estar existencial, alerta Lipovetsky. Antes de mais, precisamos dos outros para ser felizes - e isto nada tem a ver com o consumo ou a falta dele.
A felicidade sem controlo
Lipovetsky vai mais longe: "Sou contra a postura hipócrita de alguns intelectuais que consideram que a evasão efémera é uma necessidade inferior. Claro que ela não conduz à Felicidade com maiúscula, mas permite satisfações materiais, sensuais, fáceis - que apesar de tudo não deixam de ser ingredientes de uma vida feliz. Uma filosofia da felicidade não deve excluir nem a superficialidade nem a profundidade". E acrescenta: "O que é criticável é o facto de viver apenas para consumir".
"O que é preciso corrigirmos é o lugar que o consumo ocupa nas nossas vidas, fazendo-o em nome de uma ética da pessoa e não da felicidade. Mas só uma outra paixão poderá permitir reduzir a paixão consumista; temos de inventar uma pedagogia, uma política das paixões, capaz de mobilizar os afectos fora do consumível, da compra: no trabalho, no desejo, na criação, na arte. Temos de criar uma ecologia mais equilibrada da existência. O crucial é que as satisfações aconteçam fora dos paraísos passageiros do consumo".
Isto tornar-nos-á felizes? "Na minha opinião", diz Lipovetsky, "a felicidade foge obstinadamente ao controlo humano. É ilusório pensar que podemos construir a felicidade".