Helvetica A letra que (quase) todos adoram odiar
É uma letra banal, eficaz para transmitir mensagens e cuja utilização a vulgarizou e a transformou numa espécie de campo de cultivo exaurido, sem muito de novo para oferecer. Prático como umas calças de ganga, tão impossível de reinventar quanto Elvis Presley. Conheçam o Helvetica. Joana Amaral Cardoso
a Na Escola António Arroio, em Lisboa, nas aulas dos professores Vítor da Silva e Abreu Lima, "chamavam-lhe o bâton, porque eram letras direitas", recorda o designer Manuel Paula sobre o Helvetica, o tipo de letra que está a ser celebrado em todo o mundo.Os tributos pelos seus 50 anos são silenciosos como os letreiros nas ruas e pomposos com uma exposição no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
O Helvetica é aquele tipo de letra seco, sem flores, linear, fácil de usar, como umas calças de ganga. Foi criado ainda na era do metal tipográfico, quando um tipo de letra se comprava ao alfabeto, em pacotes de pequenas peças pesadas e brilhantes. O MoMA obteve os primeiros tipos Helvetica, em chumbo, e apresenta-os desde o início de Abril na exposição 50 anos de Helvetica (até Março). Em Portugal, também se celebra o Helvetica. Hoje, designers e académicos reunidos na conferência Reflexões sobre Design, no Fórum Romeu Correia, em Almada, dedicam um painel ao desenho das letras. Paulo Heitlinger fala sobre 50 anos de Helvetica - E Agora? e La Salete Sousa aborda O objecto caracteres tipográficos e a sua dissecação semântica.
Para quem escolhe o Helvetica, ele transmite segurança e fiabilidade, identifica roupas que não saem de moda, chocolates que mantêm o sabor. Para quem não o usa, é banal, cansa, não tem brilho.
O realizador Gary Hustwit, conhecido pelo trabalho na editora punk SST Records, lançou este ano o documentário Helvetica: A Documentary Film, no festival South by Southwest, no Texas, e agora anda a mostrá-lo pelo mundo. Hustwit explicou à revista I.D que o Helvetica é "muito punk" porque tem simultaneamente uma atitude anti-autoritária mas também a mentalidade construtiva do faça-você-mesmo que caracteriza o punk e também as letras mal-amadas.
E o filme é sintomático da dualidade desta fonte e do tipo de reacções que o Helvetica suscita. Neville Brody, o consagrado designer britânico e ex-director de arte das revistas The Face e Arena, usou o Helvetica até à exaustão nos anos 80. Hoje reconhece que é eficaz mas monótono. As pessoas usam Helvetica para "serem membros do clube da eficiência", comentou à BBC. Helvetica significa "aborrecido, cauteloso, sem ambição".
Há de facto uma espécie de "amem ou deixem-no" quando se fala desta letra. Há um suspiro que se ouve do outro lado da linha telefónica quando se pede para comentar a importância do Helvetica ou um simples "bolas" num e-mail.
"Nem todas as letras são assim, mas há fontes que suscitam estes sentimentos", confirma, ao telefone, Mário Feliciano, o mais conhecido criador de fontes português. Tudo tem a ver com a forma como as pessoas se relacionam com elas, com o momento em que todos os que têm computador se tornam tipógrafos amadores, ao escolher o tipo de letra com que vão redigir um documento. Mas também não se pode esquecer "o caminho que elas seguem", os usos a que elas se prestaram. Para Mário Feliciano, esta "é uma letra que tem um cariz tão popular que só serve como paródia", uma instituição como o Elvis Presley. "É muito boa para os caixotes de frigoríficos ou televisões, descartável. É tão forte que não tem personalidade, é tão popular que é banal", resume.
Nem Lisboa, nem Porto
Phil Baines, professor de tipografia da escola Central Saint Martins da Universidade de Artes de Londres, detesta o Helvetica. Não teria saudades dele se ele desaparecesse, como contou por e-mail ao P2. Acha-o mais apropriado para as grandes empresas que o adoptaram, como a operadora de telemóveis Orange ou a Intel. No Reino Unido é usado nessas empresas "e nas galerias de arte que não querem ofender os artistas que não conhecem o poder da tipografia", ironiza. Baines nota que o Helvetica "é usado em sinais" públicos, mas para ele "é menos legível do que muitas outras fontes".
E felizmente, diz o designer britânico que visitou várias vezes Lisboa em busca da sua riqueza tipográfica, não se vê muito em Lisboa a "estragar a paisagem". O mesmo constata Manuel Paula, autor dos livros Lisboa Gráfica e Porto Gráfico, que recolhem as letras icónicas das duas cidades. Este peão-designer diz que se vê algum Helvetica nas montras, cartazes e letreiros mais amadores, mas "tem muito pouca utilização". Quando existe, diz, "tem um uso tradicional, nos aeroportos, hotéis, hospitais".
Já Christian Larsen, curador da exposição do MoMA, só tem elogios para o Helvetica - "transmite a mensagem rapidamente e de forma eficaz sem se impor"; e quando o lemos "quase não se notam as formas das letras, apenas o significado". Raghunath K. Joshi, designer de letras e caligrafista no Instituto Tecnológico da Índia, em Mumbai, mostra a mesma reverência e descreve-o como fonte que "reflecte a modernidade". O meio, já dizia o comunicólogo Marshall McLuhan, é a mensagem.
As raízes do Helvetica são suíças. Mas Helvetica é o seu segundo baptismo. Max Miedinger e Eduard Hoffmann trabalhavam na Haas Type Foundry, em Muenchenstein, e desenharam um novo tipo de letra, chamando-lhe Neue Haas Grotesk. Só em 1960, por questões de marketing relacionadas com a reputação de eficácia e honra rectilínea de todas as coisas suíças, é que foi baptizado de Helvetica (do latim Helvetia, que significa Suíça), mais memorável, especialmente para os anglófonos.
O trabalho dos dois tipógrafos foi baseado noutros estilos de grotescos - os tipos de letra sem patilhas, os serifs, "que davam elegância às letras", comenta Mário Feliciano. "A verdade é que o Helvética, na altura, foi uma sistematização de uma ideia que já existia, tornada num produto comercial e que teve muito sucesso e foi muito imitado", dispara.
Tornou-se num caso raro de popularidade. "Foi usado com alguma substância nos anos 60 e 70, mas mais em publicidade", comenta Manuel Paula. Nessas décadas, nos EUA, foi um sucesso entre os publicitários e consagrou-se na sinalética do metropolitano de Nova Iorque. Em 1964, ajudou a escrever uma entrada na história da música ao ser escolhido para dar corpo ao álbum A Love Supreme, de John Coltrane. Começou a ser escolhido para os logótipos de marcas multinacionais dos mais variados produtos, da roupa utilitária aos chocolates, passando pelas companhias de aviação e pelos camiões do Alto Comissariado para os Refugiados da ONU.
E depois vieram os computadores. O Helvetica fazia parte das fontes da Macintosh, lançada em 1984, o que a restabeleceu "numa nova geração de mentes de designers como a cara do modernismo", contextualiza Phil Baines.
"Ouvi dizer que o Steve Jobs é um apaixonado de tipografia e que foi ele que o escolheu" para os primeiros Macs, comenta Hustwit.
Hoje, "é usado da mesma forma em qualquer país na Europa ou cidade na América", diz Gary Hustwit, que visitou várias cidades, de Nova Iorque a Berlim, no encalço do Helvetica. "Tudo o que tenha alguma coisa a ver com maquinaria, construção, mudanças ou camiões usa-o. Todas as lojas de serralharia em Amesterdão e Zurique provavelmente têm-no na montra." É um artefacto pop, mas passa despercebido.
Como todas estas coisas da tipografia, que normalmente são lidas mas não observadas. Mas não o digam ao director de fotografia do documentário, que teve de andar a fugir pelas ruas de várias cidades por ser mal interpretado pelos proprietários de empresas cujos letreiros andava a filmar. Luke Geissbuhler, no entanto, já estava preparado para estes imprevistos. Tinha acabado de andar pelos EUA, durante seis meses, a filmar Borat. O que se revelou imbuído de um espírito tão punk rock quanto um documentário sobre um tipo de letra.