Suu Kyi continua a mais famosa prisioneira do mundo
Os generais da Birmânia recusaram mais uma vez libertar a filha do "herói da independência" e líder da Liga Nacional para a Democracia. "Têm muito medo dela", diz uma amiga
a Prestes a completar 62 anos, no dia 19 de Junho, Aung San Suu Kyi já quase não tem forças para cuidar do jardim da sua casa, em Rangun, onde segundo um relato da Vanity Fair brotavam lírios, gardénias, jasmim e até uma flor da América do Sul chamada "ontem, hoje e amanhã". No entanto, apesar do estado de saúde cada vez mais debilitado, a sua amiga Debbie Stothard diz que ela ainda "aterroriza a junta militar" birmanesa. Foi por isso que, na sexta-feira, na avaliação que faz em cada 12 meses, ao abrigo de um obscuro decreto de segurança, o regime que se auto-intitula Conselho para a Paz e Desenvolvimento do Estado decidiu que a líder da Liga Nacional para a Democracia (NLD, sigla em inglês) se mantém a "mais famosa prisioneira política do mundo".
Mais uma vez, foram ignorados os apelos internacionais para a libertação da mulher a quem chamam "a Nelson Mandela da Ásia", feitos pela ONU, EUA e UE. Nem uma carta de 60 antigos presidentes e primeiros-ministros sensibilizou o ditador Than Shwe.
O jardim de Suu Kyi é como uma metáfora da Birmânia: um terreno onde crescem as ervas daninhas e onde as cobras são dos raros seres vivos autorizados a entrar. Diz ao P2, por e-mail, Debbie Stothard, coordenadora da ALTSEAN, rede de apoio à democracia birmanesa que integra activistas, ONG, académicos e políticos do Sueste asiático: "As condições de detenção de Aung San Suu Kyi na sua casa são piores do que numa prisão. Pelo menos na prisão, ela tinha direito a visitas e telefonemas, de amigos, familiares, médicos e advogados."
Agora, o médico aparece cada vez menos, e "o contacto com o mundo exterior é tão restrito que é como se ela estivesse na solitária", adianta Stothard. "O regime tenta quebrar-lhe o ânimo, afastando-a da família, mas, apesar da perseguição e do isolamento dos que mais ama, ela mantém o espírito forte."
Há informações que circulam entre os apoiantes de Suu Kyi de que nem sequer os dois filhos, Alexander e Kim, a residirem em Londres, lhe podem telefonar. O mesmo acontecera com o seu marido, Michael Aris, que morreu de cancro da próstata, em 1999. Na altura, o regime permitiu que ela fosse ao funeral, mas deixou claro que não a deixaria voltar. Ela preferiu não viajar, guardando para si a dor de uma ausência que já era prolongada.
Filha de um herói
A relativa tranquilidade da vida de Suu Kyi foi abalada quando, em 31 de Março de 1988, teve de apanhar um avião de urgência para Rangun, onde a sua mãe sofrera um ataque cardíaco. A capital birmanesa vivia um período de convulsão. A 23 de Julho, o general Ne Win, autocrata xenófobo que tomara o poder pelas armas em 1962, demitira-se na sequência de protestos.
A 15 de Agosto, na sua primeira acção política, Suu Kyi enviou uma carta aberta ao Governo, pedindo eleições multipartidárias. A 24 de Setembro, fundou a NLD, seguindo a filosofia de não violência de Mahatma Gandhi - ironicamente a Índia é hoje um dos raros aliados da junta birmanesa, a par da Rússia (que fornece tecnologia nuclear) e da China, ansiosos por explorar recursos naturais, como petróleo, gás e urânio.
Em 27 de Dezembro, no enterro da mãe, Suu Kyi prometeu honrar a memória do pai, Aung San, herói da luta pela independência, assassinado em 1947, em plena reunião do governo, antes de cumprir o sonho de formar um Estado federal com as suas várias minorias étnicas.
Ser filha de um herói não tem sido fácil para Suu Kyi. A primeira detenção domiciliária começou em 20 de Julho de 1989. Em 27 de Maio de 1990, a sua NLD conquistou 81 por cento dos 485 lugares da Assembleia Nacional, nas primeiras eleições em quase três décadas. O Partido de Unidade Nacional, pró-governamental, ficou reduzido a dois por cento.
O escrutínio foi anulado. E Suu Kyi, que deveria ter sido primeira-ministra, voltou a ficar sob detenção domiciliária. Foi libertada em Julho de 1995, mas, sempre vista como ameaça, voltou à residência vigiada em Setembro de 2000. Dois anos depois, a junta sentiu-se confiante para a pôr em liberdade, e até a autorizou a viajar pelo país.
Recorda Debbie Stothard: "Em 2002, [os militares] pensavam que, não a vendo há 13 anos, o povo a tinha esquecido, mas dezenas de milhares de pessoas assistiam aos seus comícios, não obstante as ameaças de violência do regime, e o regime ficou extremamente nervoso e perturbado." Em 30 de Maio de 2003, um bando de arruaceiros atacou a caravana de Suu Kyi, numa aldeia do Norte. Alguns militantes da NLD foram mortos e feridos. Suu Kyi fugiu do local com a ajuda do motorista, mas foi detida ao chegar à localidade de Ye-U. Mandaram-na para a penitenciária de Insein, em Rangun. Em Setembro, depois de ela ter sido submetida a uma histerectomia (remoção do útero), o Governo colocou-a de novo sob detenção domiciliária. E assim tem passado 11 dos últimos 17 anos.
Medo, poder e corrupção
"A confiança que as pessoas depositam em Suu Kyi não diminuiu, apesar dos anos de detenção, e há cada vez mais activistas a fazer ouvir a sua voz", assegura Stothard. A extrema magreza de Suu Kyi impressionou um enviado da ONU que a visitou em 2006, mas é "o regime que está muito mais fraco", garante a coordenadora da ALTSEAN. "Até os seus próprios oficiais e soldados se ressentem da liderança. Civis e militares fogem do país devido à opressão e ao caos económico."
Para realçar como a junta "está em apuros", e citando a Jane"s Defence Weekly, Debbie Stothard adianta que, entre Junho e Setembro de 2006, desertaram um total de "9497 soldados - mais 8 por cento que no mesmo período de 2005".
A NLD ofereceu-se, o ano passado, para reconhecer a junta, se o Parlamento se pudesse reunir, abrindo caminho a uma "genuína transição", recorda Stothart. "Infelizmente, o medo e a ganância do regime não os deixa ver a situação com racionalidade." Ou como diz Suu Kyi num dos seus mais eloquentes discursos: "Não é o poder que corrompe, é o medo. O medo de perder o poder corrompe os que se agarram a ele, e o medo do castigo do poder corrompe os que se submetem."