"A verdade toda sobre o 27 de Maio nunca será conhecida"
A repressão que se seguiu é um dos episódios mais sombrios da história de Angola. Pesa o mutismo e o trauma das famílias das vítimas
a O silêncio abateu-se sobre o 27 de Maio de 1977. E o medo da repressão instalou-se em Angola. O desconhecimento sobre o que aconteceu às vítimas da repressão do regime do Presidente Agostinho Neto, nos dias que se seguiram ao que terá sido uma tentativa de golpe, corrói. E com ele as dúvidas de dezenas de milhar de familiares de vítimas dessa repressão - fraccionistas, dissidentes do movimento liderado por Nito Alves e José Van Dunem ou simplesmente pessoas suspeitas de deslealdade à liderança do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Em cada aniversário, pesam essas dúvidas. E esse silêncio de 30 anos. Nesse dia, a prisão de São Paulo de Luanda foi tomada e centenas de presos libertados e oito dirigentes do MPLA foram queimados no bairro de Sambizanga. A rádio nacional foi ocupada e aos seus microfones anunciada a mudança de regime.
Mesmo para os que estão certos de que foi um golpe, terá sido um golpe com dúvidas porque nem todos os dissidentes o desejavam. E foi um golpe falhado.
Para os mais cépticos, a tese da "tentativa de golpe de Estado" invocada pelo MPLA terá sido apenas o pretexto para a eliminação de opositores, dissidentes ou dirigentes do partido que discordavam da via seguida por Agostinho Neto, Presidente e líder do MPLA. Essa eliminação com contornos de "violência extrema", segundo o historiador britânico David Birmingham, ficou a cargo dos serviços da Direcção de Informação e Segurança de Angola (DISA).
Milhares de pessoas, suspeitas ou acusadas de deslealdade ao MPLA, foram presas, torturadas, executadas. Entre as mais conhecidas, além de Nito Alves, comandante respeitado da luta pela independência, e Zé Van Dunem - ambos tinham sido expulsos do Comité Central do MPLA uma semana antes -, estava também Sita Valles, de uma família goesa e com ligações ao Partido Comunista Português (que este viria a renegar) e que, em Angola, na efervescência do debate de ideias que se seguiu à independência, se tornara conselheira ideológica de Alves e mulher de Van Dunem.
Os fraccionistas eram idealistas, jovens radicais comunistas. Aproximavam-se das ideias de Mao Tse Tung, de Lenine e do líder da Albânia Enver Hoxa.
Um partido das massas
"Enquanto não virmos brancos e mulatos ao lado dos pretos a varrer as ruas, Angola não será verdadeiramente independente", dizia Alves. Mas a motivação era sobretudo social, diz David Birmingham, que minimiza a motivação racial do golpe, também invocada para atacar o movimento. Nito Alves rodeou-se de pessoas diferentes, mulatos, indianos ou portugueses brancos, lembra o historiador.
"Ele queria igualdade. Ele dizia que toda a gente deve ser igual, que não devia haver privilégios e sobretudo privilégios com base na cor da pele", continua Birmingham, autor de vários livros sobre História de África e professor de História na Grã-Bretanha. "Eles queriam um regime igualitário mais radical, queriam benefícios para as pessoas dos musseques que tinham ganho muito pouco com a independência. O radicalismo deles dizia que eram o partido não só do nacionalismo mas também dos pobres, das massas. Queriam algo vindo das raízes da população", conclui.
Aconteceu há 30 anos. Com o país independente, mas em guerra civil. E mergulhado na desilusão de uma independência - conquistada dois anos antes - que não trouxera benefícios à maioria. O descontentamento crescia face à penúria de alimentos e à escassez de quadros e meios para reconstruir o país. Os fraccionistas mobilizaram esse descontentamento naquela que ficou conhecida como "a revolta dos musseques". Primeiro nos bairros de Luanda.
Marcha para o asfalto
A marcha dos pobres dos musseques em direcção ao asfalto começou em Sambizanga e foi travada pelos tanques de Cuba. Num artigo da jornalista britânica Lara Pawson a publicar no próximo número da revista portuguesa Relações Internacionais, um sobrevivente fala do trauma que se vive neste bairro: "As mesmas famílias que perderam os seus filhos ainda vivem no Sambizanga. São agora pessoas completamente transtornadas, com psicoses, com depressões".
Um outro sobrevivente acrescenta que os angolanos são hoje um povo tranquilo, que não protesta e tem medo de manifestações. Tem medo. E não pode esquecer o que aconteceu em 1977. É também por isso que tanta gente bebe, diz. "Para esquecer o que temos dentro das nossas cabeças."
Da repressão que se seguiu ao golpe de 27 de Maio não há rasto de muitos dos mortos nem certezas sobre o número de vítimas. Fala-se em 30 mil. "Ninguém sabe. Não se pode falar de 30 mil quando não existem números. Milhares sim. Talvez 30 mil, mas, não havendo provas, esse número não tem verdadeiro sentido", continua o historiador David Birmingham.
O paralelo que mais frequentemente se faz da repressão de 1977 é com a repressão de 1992 em Luanda, depois da primeira volta das eleições presidenciais em 1992, quando a UNITA de Jonas Savimbi dava sinais de não aceitar os resultados e o MPLA se antecipou para esmagar a organização, perseguindo, casa a casa, e assassinando dirigentes e simpatizantes da UNITA.
Como com a guerra civil, é difícil encontrar quem não esteja, directa ou indirectamente, ligado ao 27 de Maio de 1977. Ao contrário da guerra, que durou décadas, a eliminação de milhares de pessoas, casa a casa, fez-
-se em pouco tempo. E, desde então, pouco ou nada se fala.
Para os mais cépticos, a tese de golpe terá sido apenas o pretexto para eliminar opositores de Agostinho Neto
A "verdade toda" sobre o 27 de Maio nunca será conhecida, diz ao PÚBLICO David Birmingham, autor de vários livros sobre História de África e professor de História na Grã-Bretanha, primeiro na School of Oriental and African Studies, depois na Universidade de Kent, agora reformado. "Estaremos sempre a encontrar pedaços das muitas verdades sobre o 27 de Maio de 1977; mas nunca saberemos toda a verdade."
Para ele, não existem dúvidas: o 27 de Maio de 1977 foi uma tentativa de golpe para substituir Agostinho Neto no poder pela geração de jovens do partido, liderados por Nito Alves e Zé Van Dunem. "Foi um golpe de Estado. Em parte falhou porque o Exército não o apoiou na totalidade. E em parte porque a presença cubana decidiu apoiar Agostinho Neto e não a ala radical dos jovens", diz David Birmingham.
"Cuba teve de decidir muito rapidamente se apoiava os jovens idealistas radicais ou os antigos pragmáticos do partido. E apoiou os velhos do partido."