A feira do livro ideal
Se tivéssemos a organização dos alemães, a capacidade de falar à volta de uma mesa dos franceses, o orgulho dos ingleses e a animação dos brasileiros seríamos capazes de organizar a melhor Feira do Livro do mundo
a Se o que os portugueses querem das feiras do livro é comprar livros com desconto, então as feiras do livro de Lisboa e do Porto, nos moldes em que existem, servem perfeitamente. Aquelas que são consideradas as melhores feiras do livro do mundo - a Feira de Frankfurt, a Feira de Londres e a Book Expo America - não servem para isso. São feiras para os profissionais do sector, onde editores, agentes literários, scouts (caçadores de novidades), livreiros se encontram para fazer negócios: comprar e vender direitos, discutir problemas e descobrir novas tendências. Algumas destas feiras profissionais têm determinados dias em que também estão abertas ao público que ali pode comprar livros e assistir a conferências e sessões de autógrafos com autores. Mas não é para isso que estão vocaccionadas. São feiras para onde se deslocam jornalistas de todo o mundo e nenhuma delas se realiza ao ar livre. Não são festivais do livro."Neste momento e com a tradição que temos era impossível organizar em Portugal uma feira de venda e compra de direitos como são as feiras internacionais de Frankfurt ou de Londres", diz Hugo F. Xavier, da editora Cavalo de Ferro, a propósito do modelo ideal das feiras do livro de Lisboa e do Porto que hoje abrem - às 16h (Porto) e às 18h (Lisboa). Porque a tradição das feiras nacionais é serem feiras para venda. "Os portugueses poupam dinheiro o ano todo para irem depois comprar os livros que desejam durante a altura da feira em que os preços são mais baratos", acrescenta.
Nas feiras lisboeta e portuense o desconto praticado no preço do livro pode ir até aos 20 por cento, mas se este tiver sido publicado há mais de 18 meses pode ir até onde os editores quiserem - 50%, 60%... E na sua feira do livro ideal o editor da Cavalo de Ferro permitiria a prática de uma total liberdade de preços, tivessem os livros acabado ou não de ser publicados. Isso iria contrariar a ideia de que o livro é um produto caro, uma razão evocada para as vendas baixas em Portugal. Um mito, na sua opinião: porque as pessoas compram CD e DVD que são muito mais caros.
Não é a beleza que falta a Lisboa. De todas as feiras do livro do mundo que conhece, a Feira de Lisboa, entre as que vendem ao público, "é a mais bonita", diz Carlos Veiga Ferreira, da editora Teorema. "Basta irmos a Madrid - onde praticamente em simultâneo com a de Lisboa se realiza uma feira do livro ao ar livre - para verificarmos que os atractivos do Parque Eduardo VII são incomparavelmente melhores. Apesar da Feira do Livro de Madrid ser mais feia e dos descontos serem inferiores aos que se praticam em Portugal, o volume de vendas é incomparavelmente maior em Madrid."
Magnífica organização
O que falta, então, à Feira de Lisboa para funcionar bem? "Uma produção atempada e eficiente. Nos últimos quatro anos, a promoção é quase inexistente." E Carlos Veiga Ferreira defende um evento ao ar livre, porque, na sua opinião, só assim é que é uma feira. "Se não fosse ao ar livre seria um Salon du Livre, como o de Paris, ou qualquer outra coisa. Uma feira é um sítio onde as pessoas andam livremente. Sem ter de pagar para entrar ou serem controladas à entrada e à saída."
"A feira de Lisboa não devia ser um espaço fechado", defende também Bárbara Bulhosa, da editora Tinta da China que participou nas feiras pela primeira vez o ano passado. A vivência do jardim, a possibilidade de os pais levarem os filhos para a feira e passearem ao ar livre naquele espaço da cidade que habitualmente, fora do tempo em que ali decorre a feira, não é muito utilizado pelos lisboetas, acrescenta valor à feira que temos, diz. Lembra que já se tentou organizar um salão do livro no Parque das Nações e "foi um fiasco completo".
Quem costuma ir às feiras internacionais sabe que a Feira do Livro de Frankfurt prima pela magnífica organização apesar da sua gigantesca dimensão. Os alemães pensam em tudo. Desde espaços para se descansar ao fim do dia em cadeiras que dão massagens ou onde se ouve o barulho zen dos passarinhos até corners de comida japonesa. Pequenas carrinhas transportam gratuitamente os visitantes de pavilhão para pavilhão. Na construção da feira do livro ideal em Portugal ganhávamos em ir buscar aos alemães a sua organização.
Outro bom exemplo é a Feira do Livro de Londres, muito mais pequena do que a alemã, mas que tem vindo a ganhar cada vez mais importância. Os ingleses têm uma capacidade incrível de união e do que fazem. Se em Portugal existem duas associações de editores que raramente conseguem trabalhar em conjunto - a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) e a União dos Editores Portugueses (UEP) -, não se vislumbra como é que algum dia essa força dos ingleses possa por cá acontecer.
Para a semana, começa a Book Expo America (BEA), em Nova Iorque, onde o livro é assumido como um produto de consumo. Na BEA até os jornalistas têm que pagar se quiserem assistir a determinadas conferências com escritores e o programa é tão vasto, e com tantos eventos a acontecer ao mesmo tempo, que qualquer alma fica deprimida no momento da escolha.
A ambas as feiras de língua inglesa podíamos ir buscar inspiração. E também a originalidade de alguns dos stands e, já agora, os brindes, como merchandising à volta dos livros. Mas se em Portugal as editoras quase não fazem publicidade, como é que ainda dariam brindes?
O problema dos stands
Todos os editores com quem falámos acham que numa feira do livro ideal a organização dos stands de venda teria que ser diferente da que existe actualmente, à semelhança do que se passa nas feiras profissionais internacionais. "Cada editor deveria poder fazer a sua bancada à sua maneira porque aqueles stands estão ultrapassados. Assim seria possível um editor conseguir aproximar o stand daquilo que está a vender", explica Hugo Xavier. Os editores dos livros de Harry Potter poderiam transformar o seu stand num castelo ou numa escola de feitiçaria, outro editor qualquer poderia instalar-se numa tenda de circo. "Para a feira de Lisboa ser quase perfeita é preciso alterar os actuais stands que são ineficazes quando se trata de editoras de grande dimensão", defende também Carlos Veiga Ferreira. Em Lisboa, há editoras divididas por oito pavilhões. "Em Madrid os stands são mais feios, mas são modelados, mais leves, encostam-se uns aos outros e ficam juntos", acrescenta.
Sem rock
Manuel Alberto Valente, da editora Asa, também concorda que se se mantiver o paradigma actual da feira de Lisboa deve dar-se a cada editor a liberdade de construir o seu espaço. "O editor continua a alugar o espaço ao metro quadrado como já acontece agora, mas tem a liberdade de construir esse espaço como bem entender. E a partir daí a feira do livro é uma feira do livro. Os concertos de rock e os eventos paralelos acabam. A feira tem que ser uma feira do livro. Não é preciso mais nada", diz.
Mas Manuel Alberto Valente gosta do modelo do Salon du Livre de Paris. Um espaço fechado, amplo e para o qual se poderiam convidar os editores e autores estrangeiros, para comprar e vender direitos, entre os quais estariam os países lusófonos.
E o que tem o Salon du Livre francês de tão especial? O Salão do Livro de Paris é uma feira a fugir para o festival literário. Todos os anos é subordinado a um tema - este ano era dedicado à Índia -, paga-se bilhete para entrar e é aberto ao público (um dos dias é só para profissionais do sector e convidados). A entrada custa 5 euros por dia ou há um passe por 15 euros. A cidade de Paris está cheia de cartazes a anunciar o evento. As livrarias da cidade, como a Fnac, associam-se e meses antes já têm espaços dedicados à cultura (literatura, cinema, música) do país convidado.
Dentro de uma livraria
É permitido levar livros para dentro do Salon du Livre para com eles se entrar nas sessões de autógrafos. À entrada, os seguranças colocam um autocolante em cada um deles.
Cada editora tem o seu espaço construído, na maioria dos casos de maneira a termos a sensação de que estamos dentro de uma livraria. Podemos pegar nos livros à vontade e comprar. Nessa altura, colocam em cada livro que compramos um autocolante que diz: "Salon du Livre". Quer isto dizer que os livros que estão à venda na feira não estão preparados para se forem roubados fazerem soar alarmes. À saída, por vezes os seguranças pedem para ver os livros nos sacos. Se não tiverem autocolante está-se obviamente tramado.
Mas o Salão do Livro de Paris além de um sítio para comprar livros e encontrar todos os fundos do catálogo de uma editora é também um espaço de conversa. Os franceses são muito bons quando se trata de estar à volta de uma mesa a discutir determinado tema. Mesmo que seja o mais estapafúrdio (como, por exemplo, "Do prazer à raiva, do realismo poético à escrita automática"), quem está a assistir chega ao fim com a sensação de que aprendeu alguma coisa. Há dias em que é tal a quantidade de gente naqueles corredores que só se quer fugir. Mas tem-se a sensação reconfortante de que os editores estão ali para nos ajudar da melhor maneira possível.
Foi este contacto entre o editor e o leitor que entusiasmou Bárbara Bulhosa, da Tinta da China, na estreia da sua editora na feira de Lisboa o ano passado. A editora só tinha oito livros em catálogo, mas teve lucro com o seu stand. No Porto, inserida num pavilhão de pequenos editores, já não funcionou tão bem. É claro que Bárbara Bulhosa também acha que "as barracas estão velhas" e que é preciso mudar os stands e que a feira de Lisboa podia estar melhor organizada e ser melhor divulgada, mas são "coisas de pormenor". Para ela, uma feira mais festivaleira não interessa às pessoas que gostam de ir comprar livros. O público da feira de Lisboa vai lá para ver o que está em saldo e para ter contacto directo com o editor.
"Por muita volta que se dê a feira do livro é uma feira do livro. Tem que acabar esta obsessão da animação na feira. Por exemplo, duvido que os concertos que no ano passado aconteciam na feira de Lisboa tragam mais público. O que atrai público à feira são os livros e os autores", afirma também Manuel Alberto Valente, da Asa.
Mas para baralhar ainda mais as coisas no resto do mundo as preferências dos consumidores de livros estão a ir por outro caminho. Há um boom de festivais literários por esse mundo fora, cada vez mais parecidos com os festivais de música pop e rock (esta semana o jornal britânico The Independent trazia um artigo sobre isso). A animação e êxito que um festival literário como a Festa Literária Internacional de Parati, no Brasil (este ano vai realizar-se de 4 a 8 de Julho), tem vindo a acumular pode fazer pensar que é esse o caminho a seguir.
As pessoas ambicionam estar numa tenda a ouvir os seus escritores preferidos e a fazerem-lhes perguntas? Parece que sim e se o escritor for um óptimo comunicador vão querer cada vez mais. Os tempos estão a mudar. Lembrem-se bem disto: Oprah entrevistou o escritor Cormac McCarthy, tido como recluso, no seu programa de televisão. O escritor Kurt Vonnegut, que morreu em Abril com 84 anos, foi um dos primeiros a participar num evento no Second Life (mundo virtual 3D a imitar o mundo real), onde também já se organizaram duas feiras do livro virtuais.
Mas, em Portugal, festival do livro com alguma expressão e para o qual são convidados autores estrangeiros só existe o Correntes d"Escritas, na Póvoa de Varzim. Surgiu mais recentemente o Encontro Internacional de Literatura de Viagens em Matosinhos e este ano estava anunciado o Lisboa Cidade do Livro, com programação de Francisco José Viegas, que por falta das verbas que iriam ser disponibilizadas pela Câmara Municipal de Lisboa acabou por morrer quase à nascença.
Portugal parece ser por isso em matéria de feiras do livro um caso especial. Se o que os portugueses querem de uma feira do livro é comprar livros com desconto... então, acreditem nós por cá estamos até muito bem.