Isto há muito tempo, quando os Of Montreal eram ainda uma banda a sério e editavam álbuns como "The Gay Parade" ou "Coquelicot Asleep In The Poppies". Os Of Montreal que conhecemos agora são basicamente Kevin Barnes – é ele o cantor e compositor, é ele que grava a quase totalidade dos instrumentos – e desde "Satanic Panic In The Attic", de 2004, que Kevin Barnes se vem reconvertendo em cantautor absurdamente desalinhado: senhor de colorido glam, de extravagâncias na pista de dança e dono de todos os sintetizadores de que o synth-pop se possa lembrar. "Hissing Fauna, Are You The Destroyer?", o seu último álbum, tem como pano de fundo uma depressão profunda – envolve uma estadia pouco saudável na Noruega, o país da sua mulher, uma separação, o mundo como espaço e crueldade e as pessoas como gente que raramente nos trata bem. Deveria ser, como apontam as evidências, um álbum angustiado e deprimido, uma descida aos infernos da existência. Isto, até que ouvimos a primeira canção, "Suffer for fashion", que é funky burlesco iluminado por sintetizadores, com uma multidão a dançar eufórica e Kevin Barnes a cantar coisas como "Let's all Motown together". E que dizer de "A sentence of sorts in Kongsvinger"? Vibrafone sintetizado a saltitar em fundo, secção de cordas manhosa a bambolear-se em provocação e um refrão, para terror de Eládio Clímaco, como versão monstrinho dos Abba. Não, este não é o típico álbum de lamento de amor – Kevin Barnes faz tudo menos atrair-nos para o seu lago de depressão. A excentricidade dos Of Montreal mantém-se inalterável e a sua visão da pop como jogo de contrastes e palco para bizarrias não se altera com a evolução da música. "Hissing Fauna, Are You The Destroyer?" é o mais desconcertante álbum confessional jamais gravado – porque é, também, um festim pop para dançar em euforia. Em "Cato as a pun", Kevin Barnes mostra-se primo pouco afastado dos magníficos Fiery Furnaces. "The past is a grotesque animal", onde se ouvem versos como "At least I author my disaster", é um épico de 12 minutos, híbrido de motorika kraut-rock e synth-pop de baixo pecaminoso. E há falsete do Prince dos bons velhos tempos em "Labyrithian pomp", há um pouco de Sly Stone no "groove" de "Faberge falls for Shuggie" e quase imaginamos o Bowie de "Space Oddity" convertido à new-wave em "She's a rejecter". Aquele "imaginamos" é aqui essencial. Kevin Barnes é um magnífico encenador de teatro pop e a sua marca autoral ergue-se acima dos nomes que, instintivamente, vamos associando às suas canções. Aliás, Kevin Barnes é tão bom (ou tão perverso) que passa um álbum inteiro a falar-nos da sua depressão e a única coisa que, no final, conseguimos sussurrar-lhe ao ouvido é um convicto: "Ganda festa pá! Temos que repetir um dia". O sorriso que ele nos devolve inclassificável.
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