O caso de Schnabel
Em 1995, um acidente vascular cerebral mergulhou um jornalista, Jean-Dominique Bauby, 43 anos, num coma profundo, de onde acordou sem movimentos no corpo, encerrado, literalmente, em si próprio. Só a cabeça, a imaginação, funcionavam. E uma pálpebra. A esquerda. Foi essa a ligação ao mundo que lhe restou, e com o abanar da pálpebra - uma vez queria dizer "sim", duas vezes "não"... - o francês Jean-Dominique "escreveu" um livro: perante a indicação de letras do alfabeto, um abanar de pálpebra identificava uma, e depois outra, que se podiam ir juntando, formando-se palavras, frases, e as páginas de Le Scaphandre et le Papillion, best-seller em 1997, nasceram. O autor morreria dias depois da publicação desse testemunho do seu mundo interior, dessa visitação ao passado e aos actos falhados da sua vida -sempre lhe restou uma pálpebra e sentido de humor.O livro é agora um filme, e pode-se pensar em Mar Adentro, de Alejandro Aménabar. Talvez como ponto de partida. Mas o filme de Julian Schnabel (competição) prescinde do discurso sobre a eutanásia (nunca esteve em causa no "caso") e investe tudo em fazer o espectador experimentar a pálpebra aberta de Jean-Dominique.
Sabemos que uma coisa são as palavras (o livro), sabemos que as imagens (o filme) podem ser mais comprometedoras - porque roubam a imaginação. No caso de Schnabel o caso ainda é mais periclitante porque aquele que foi uma das figuras das artes plásticas novaiorquinas dos anos 80, e que se tem querido reinventar como cineasta, nunca prescinde (veja-se Basquiat, veja-se Quando Anoitece...) de falar de si próprio. "Ele", o "artista", sozinho, afastado do mundo, em luta com o mundo. O "caso" de Jean-Dominique (interpretado por Matthieu Amalric) é então uma auto-estrada aberta para Schnabel continuar a pregar por essa via egocêntrica. V.C.