Shangri-La

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Há, na banda de Furtado, uma marca notória: este som só pode ser criado por alguém que colecciona singles de soul perdidos no baú da avozinha, vinis de funk cuja existência os próprios autores esqueceram, hinos gospel que já não têm igreja onde brilhar – um som de quem conhece a mais agreste bluesada, o country marginal, a música hoje perdida e que, da década de 40 até inícios de 70, faz parte de um imenso puzzle hoje impossível de reconstruir. Ora, se não se pode reconstruir o que se pode fazer? Obviamente escrever canções inspiradas nesse tal baú de velhinha. Só que em vez de olharem nostalgicamente para o enxoval da avozinha e pensarem "Nesse tempo é que era bom", os Wraygunn lavaram o vestido para tirar o cheiro a naftalina, fizeram a saia mais curta, tiraram-lhe as mangas, da parte de cima fizeram um top e tingiram-no de vermelho, juntaram meias de renda e uns sapatos de salto alto e devolveram a esta música o sentido de perigosidade e de vibração sexual que está na sua origem. Foi sempre esse o objectivo dos Wraygunn desde o início com "Amateur" (EP de 2000), progredindo posteriormente em "Soul Jam" (2001) e "Eclesiastes 1.11" (2004), com a particularidade da ligeira vertente electrónica do início ir perdendo espaço e de cada disco se ter tornado mais coeso e o imaginário de "marginalidade" rock com os pés na ruralidade e a cabeça na cidade se ter cimentado. "Shangri-La", o disco que se segue à internacionalização da banda, é, então, o passo óbvio e seguro: na sua maior parte estas são canções imediatas, melódicas, cheias de vertigem rock'n'roll, que se atiram à jugular desde o primeiro instante. Se quiserem, e passe o provincianismo do comentário, parece um disco de filho de parteira alcoólica do Mississipi. Isto é um elogio. Abre com os dois temas mais directos, centrados na guitarra. No primeiro, "Ain't it nice?", Furtado canta "Drinkin' whiskey and wine, ain't it nice?", enquanto no segundo o microfone é entregue a Raquel Ralha, que alinha amantes perdidos e uma "party town" que fica "two days away", com o órgão Hammond em reverberações ao fundo. Depois começa a festa a sério. "She's a go-go dancer" abre apenas com voz e percussão, palmas em fundo, depois coros femininos, a guitarra meio mexicana e um grande tema de rock clássico – seguido do riff de "Love letters from a muthafucka", que, quando chega ao refrão, devém granada e vai, pura e simplesmente, tornar-se num instantâneo clássico de palco. Ao quinto tema, "Everything's gonna be ok" a voz de Furtado lembra Jagger – e a linha de guitarra quase honky-tonk afunkalhado, a pedal-steel guitar, a percussão bem vincada, o Fender Rhodes, tudo remete a sombra dos Stones por alturas de "Exile On Main Street" (1972). É, já agora, uma grande canção. Aqui começam as surpresas: tanto "Hoola-hoop woman" como "Just a gambling man" são lentas e misteriosas, porém orquestradas e sumptuosas (ambas têm arranjos de metais). "Rusty ways" é um gospel minimal a meias entre Raquel Ralha e Selma Uamusse, com camadas de vozes a entrecuzarem-se. O rock'n'roll volta em "Lady luck", "Work me out" soa a uma versão ameninada dos Gallon Drunk, toda groove, com um delicioso refrão sempre a subir – e também em "Silver bullets" as guitarras e o groove dominam. Há um ligeiro travo rockabilly em "Boom-boom ah ah" e a fechar o belo e grandioso lamento gospel de "No more, My Lord". Seguríssimo disco de rock'n'roll com a soul e o funk às cavalitas, com um forte groove em fundo e a noção exacta de quando explodir, é a obra maior dos Wraygunn, um exercício de variações sobre as normas clássicas do rock, escrito para deitar abaixo qualquer palco que a banda pise. Furtado pode ter nascido em Portugal, mas na cabeça dele o mapa da América não tem segredos.

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