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Anarquistas, apesar de tudo

O protesto no Chiado no 25 de Abril foi um dos maiores agrupamentos de anarquistas dos últimos anos em Portugal. Acreditam numa sociedade sem chefes, mas convivem com as inevitáveis contradições. Histórias de dez anarquistas de todos as idades

a No último 25 de Abril, no Chiado, em Lisboa, surgiram de bandeiras pretas, panos com letras "A" circuladas e foram entoando palavras de ordem contra o Estado, o fascismo e o capital, numa manifestação que terminou com uma polémica carga policial.São na sua maioria jovens, mas também os há em plena idade adulta. São anarquistas: acreditam numa sociedade sem Estado nem chefes, mas convivem diariamente com as contradições de quem vive num mundo oposto ao que imaginam.
É o caso de José Silva, nome fictício, que pede o anonimato por receio de represálias por parte dos militantes da extrema-direita. Tem 20 anos, vive em Lisboa e é estudante universitário. A actual maior visibilidade da extrema-direita portuguesa foi um dos factores que o levou a participar no protesto: "estão a crescer" e "andam saídos da casca".
A manifestação do 25 de Abril "serviu de ponto de encontro de diversos movimentos", não apenas anarquistas, contra um inimigo comum - o fascismo. "Foi uma concentração bastante grande. Foi bastante surpreendente ver tantas pessoas." E José Silva define os contornos do protesto: foi uma "manifestação anti-autoritária contra o capitalismo e o fascismo". Terá juntado cerca de 300 pessoas (150 na versão policial), sendo porventura o maior protesto a envolver anarquistas dos últimos anos.
José Silva, que se queixa de ter levado três bastonadas de um polícia sem justificação, foi um dos criadores do Cravado no Carmo, um site que reúne testemunhos e informação sobre o que os manifestantes consideram ser a acção "despropositada" e "injustificada" da PSP no Chiado. A polícia justificou a intervenção com um alegado comportamento agressivo e actos de vandalismo dos participantes do protesto. Onze pessoas com idades entre os 20 e os 30 anos foram detidas.
António Sousa é outro dos manifestantes, de 28 anos, também anarquista. Invoca o mesmo receio de represálias para usar um nome fictício na conversa com o P2. "Durante dois anos tive a minha foto na net. Vi amigos terem "nazis" à porta de casa", justifica este lisboeta, que andou pela "okupa" da Praça de Espanha, nos anos 90 e já foi detido por participar em manifestações ilegais. "Por posição ideológica não pedimos autorização ao governo civil", refere.
Com 22 anos, João (pediu para não ser identificado pelo apelido), de Évora, secretário e membro da banda anarco-punk Inconformidade Anti-Constitucional, participou no protesto para "mostrar às pessoas que existe uma alternativa", "numa altura em que o sistema tem legalizado um partido político assumidamente "nazionalista" [o PNR]", conta por e-mail. À semelhança dos outros manifestantes ouvidos pelo P2, ficou "espantado" com as dimensões da manifestação e conclui que "o movimento está a crescer".
Diogo Duarte, de 22 anos, anarquista e estudante de Antropologia Social no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), não concorda com esta análise. "Não considero que haja um movimento anarquista em Portugal. Mesmo os que se manifestaram são agrupamentos de indivíduos muito dispersos", contrapõe. O estudante acredita que "há terreno" para que "características anarquistas" tenham aplicação no dia-dia e cita como exemplos o software de código aberto e as licenças flexíveis de propriedade intelectual Creative Commons.
Viver em contradição
Mas no desfile pelo Chiado não havia só jovens. Júlio Conceição, 43 anos, gritou "contra o Estado e o capital". Pertence a uma "associação de ecologia social anti-autoritária", a Planeta Azul, que nasceu há 15 anos no Porto. Dá aulas de português a cerca de 50 imigrantes e dinamiza grupos de escuteiros livres, sem chefes e com uma postura crítica.
Também a Terra Viva, do Porto, desenvolve trabalho no âmbito da ecologia social e com escuteiros livres. José Paiva, membro da associação, refere duas ideias-chave da ecologia social: o capitalismo e o respeito pela natureza são incompatíveis e o ambientalismo é muitas vezes sinónimo de "capitalismo verde".
José Paiva tornou-se anarquista depois da revolução de 1974, quando percebeu que os partidos de extrema-esquerda, onde militou, não levariam a uma sociedade igualitária. Hoje, com 56 anos, põe a tónica na intervenção social. O anarquista deve intervir na sociedade, "não como vanguarda, mas ao lado, ombro a ombro, com pessoas não anarquistas", defende. "Se não hoje somos poucos e amanhã seremos ainda menos". Diogo Duarte, o estudante de antropologia, concorda. O anarquismo não é uma "utopia", diz. "Por uma razão: não pretende ser perfeito", explica o estudante, que chegou à ideologia no início desta década através de um livro de Noam Chomsky.
Anarquista dos sete costados, José Paiva recebe o subsídio de desemprego, concedido pelo Estado que ele próprio rejeita. Contradição? Ele diz que não: "O Estado não nos dá nada; devolve-nos um pouco do que lhes demos."
Ser vegetariano
"Qualquer anarquismo que se queira puro é reaccionário. A vida é feita de cambalhotas, mestiçagens e contradições", refere António Silva, de 48 anos, professor numa escola de Espinho. Admite que o "sistema escolar faz das pessoas não tanto indivíduos livres como cidadãos obedientes", mas acredita que só através da "educação e da intervenção global" é que "o capitalismo e o poder dominante, cada vez mais global, se vão minando". É o que procura fazer nas suas aulas, no blogue Pimenta Negra, e no movimento ecologista GAIA.
"É quase viver em contradição", nota Diogo. Mesmo assim, tenta "questionar todo o tipo de autoridade". "Na faculdade, em que há um sistema altamente hierárquico, nunca me resignei ao espírito competitivo, quase de guerrilha", exemplifica. "Escolher aquilo que compro" e ser vegetariano são outras das pequenas vitórias do dia-a-dia para este libertário.
"Tento limitar o impacto da minha vida", aponta José Silva. Também é vegetariano e rejeita o tabaco, o álcool e as drogas para "estar o mais lúcido possível e consciente" de tudo o que o rodeia. A "autocrítica e o auto-controlo" são essenciais a este estudante que se diz "incapaz de tomar uma atitude autoritária". "Tendo a encarar isto mais como uma filosofia de vida do que como uma meta concreta que se tenta atingir. É um ideal lá ao fundo, vislumbrável aqui e ali."

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