"Still Life", o título internacional do novo filme de Jia Zhang-ke (o original, "Shanxia Haoren", significa algo como "O Bom Povo da Província de Shanxi"), é a expressão inglesa para "natureza morta", que ficou como o título em português. Em"Dong", o documentário que Jia realizou imediatamente antes deste filme (e que foi exibido noIndieLisboa), nos mesmos sítios e com a mesma matéria de "Still Life", acompanhava-se um pintor. Um e outro filme formam um díptico sobre o desaparecimento de uma cidade (Fengjie) nas margens do rio Yang-Tze, prestes a ser submergida em consequência da construção da imponente barragem das Três Gargantas. Não é um acaso esta associação à pintura ou a termos pictóricos: "Still Life" é como se Jia, perante o iminente afogamento de uma cidade, se dispusesse a retratá-la repetindo o gesto ao mesmotempo sereno e rudimentar mas também angustiadamente (ou convictamente) "pré-fotográfico" com que, noutros séculos, pintores fixaram as paisagens que tinham à frente. Não um "photomaton", antes uma elaboração artesanal que contrapõe a melancolia ao "excesso de real" da fotografia - e isto é pelomenos o que nos ocorre para explicar a languidez e o torpor, quase sonolentos, frequentemente virando o "real" em "irreal", com que Jia filma a cidade de Fengjie.Como "O Mundo" (em "Plataforma", o outro filme de JiaZhang-ke estreado em Portugal, andava-se mais pelos anos 70 chineses), "Natureza Morta" tem por tema de fundo a China contemporânea, em rápida e contrastada mutação. "O Mundo" filmava uma memória pré-fabricadae instantânea (um "theme park" que reproduzia monumentos arquitectónicos dos quatro cantos do planeta), "Natureza Morta" volta a falar de um novo mundo moderno, uma "nova China" sinalizada pelabarragem (que foi um projecto lançado ainda no tempo de Mao), mas põe-se do lado de cá (ou de lá) desse novo mundo, e volta-se para o que vai ser apagado por ele. Uma cidade inteira, como dissemos - e jásemi-apagada, partes dela pelo menos, num processo de demolição cujo pleno e constante curso o filmeacompanha, mais de perto ou mais de longe, dele retirando um cenário que oscila entre o "expressionismo" do seu simbolismo intrínseco e apoderosa imanência documental da sua materialidade (momento extraordinário: um prédio que implode ao fundo, em pleno planosequência de "timing"absolutamente perfeito).
Há uma "poesia das ruínas" a trabalhar em "Natureza Morta" (é possível que venham à memória imagens de "Roma, Cidade Aberta" ou de "Alemanha, Ano Zero", por maior que sejam as distâncias entre os filmes e entre Jia e Rossellini), e é por ela, pelo seu efeito hipnótico, que a cidade se transforma numlabirinto feito de uma estranha e quase acolhedora familiaridade. Aliás, as histórias "humanas" de"Natureza Morta" falam disso: gente que vem de fora (uma mulher à procura do marido, por exemplo) àprocura de outros, que vieram para Fengjie meses ou anos antes trabalhar nas demolições e nunca mais deram sinal de vida. As entranhas descarnadas de Fengjie também são "o mundo", uma bolsa que acolhe os desenraizados (que todos são, vindos de provínciasvizinhas à procura de emprego) e os volta a enraizar em estado catatónico. Os títulos que aparecem no écrã a dividir o filme em "capítulos" mas que não têm relação evidente com o que quer que depoisaconteça, parecem sublinhar essa familiaridade calorosa, "doméstica" (os títulos são coisas como:"cigarros", "chá", etc). O mesmo para os apontamentos, sempre ao nível do quotidiano e do corriqueiro, com que Jia emoldura emocionalmente as personagens: conversas sobre telemóveis, canções pop chinesas deliciosamente melancólicas ouvidas na rádio. Às vezes é como se soltasse um desejode romantismo, totalmente desamparado e fora de sítio. Fora de sítio talvez não, porque "NaturezaMorta" torna Fengjie num território para além do real, onde cabe tudo (até um OVNI).
Pensa-se bastante nalgum cinema contemporâneo movido por semelhantes preocupações e semelhantes "dispositivos" - encenar o novo e o velho, o apagamento de um para dar lugar a outro, a evacuação de um tipo de memória física. O "Em Construção" de Jose Luis Guerin, sobre a renovação de um bairro de Barcelona, a "Juventude em Marcha"de Pedro Costa (o filme de Jia tem com este curiosíssimas afinidades "estéticas", de resto, bem como humanas - também aqui há "Venturas"). "Natureza Morta" pertence a esse família do cinemacontemporâneo e moderno que tomou como prioridade fazer trabalho de memória e de testemunho: filmar o que está condenado, filmar o que vai desaparecer. Com a convicação de que o cinema tem obrigações, e que é isso que o impede de ser apenas um brinquedo fútil (que ele, de resto, é cada vez mais).