Eles estão fascinados com as lesmas-do-mar

Em Portugal e Espanha há tantos cientistas a estudá-las como nos outros países todos juntos. Calhou assim. Agora chamam-lhes a "escola ibérica". Ao todo há 6000 espécies descritas

a O que leva alguém a interessar-se por lesmas-do-mar? Uma imensidão de coisas, que muitos nem sonham. Podem ser vagarosas, mas elas são tudo menos monótonas.Gonçalo Calado, um dos oito autores do último catálogo das lesmas-do-mar de Portugal e Espanha, que lista aqui 523 espécies, dá algumas pistas. Por exemplo, muitas têm cores tão vivas que não deixam ninguém indiferente. Foi aliás pelas cores que ele, que já coleccionava conchas desde os 14 anos, começou por se deslumbrar.
"Comecei nos moluscos com concha e cheguei às lesmas-do-mar já na universidade, quando fiz mergulho e descobri estes moluscos com cores incríveis. Reparei que em Portugal não havia ninguém a estudá-las e que havia muito para fazer", diz o biólogo, que é o presidente do Instituto Português de Malacologia, em Albufeira.
Foi doutorar-se a Espanha (na Universidade de Santiago de Compostela), onde já havia tradição no estudo das lesmas-do-mar, iniciada nos anos 70. Nos dois países ibéricos, são agora estudadas por cerca de 30 cientistas - incluindo Gonçalo Calado, de 35 anos, até o início deste ano o único doutorado português em lesmas-do-mar, que à sua volta congrega cerca de cinco pessoas. No resto do mundo, existirão outros 30 especialistas.
Porquê este particular interesse ibérico? "Não há uma justificação. Começou em Espanha, teve pessoas muito boas a trabalhar e teve muito sucesso. No meio, é chamada de "escola ibérica"."
A forma como se adaptaram ao ambiente e como se protegeram pode ser uma outra pista para explicar o fascínio exercido pelas lesmas-do-mar (em todo o mundo estão descritas 6000 espécies). "Têm alguns tipos de adaptação extraordinários." Há as lesmas cleptómanas, as que avançaram para a guerra química, as que preferem dar nas vistas e as que optaram pela camuflagem.
Quanto à cleptomania, praticam-na de várias formas. Umas roubam as fábricas de energia das algas - os cloroplastos -, para fingir que elas próprias são plantas. "Comem algas, mas não degradam os cloroplastos. Usam-nos para fazer fotossíntese. São animais fotossintéticos com cloroplastos roubados. Isto é único no reino animal."
Tal como nas plantas, os cloroplastos surripiados servem para capturar a luz solar e, depois, utilizam-na para produzir açúcares. "Funcionam como vegetais. Mais de 60 por cento do carbono que adquirem é pela fotossíntese [os açúcares são hidrato de carbono]."
Esse roubo não é discreto: da mesma maneira que os cloroplastos tornam as plantas verdes, muitas das lesmas-do-mar que se alimentam quase só de luz solar também apresentam essa cor.
Outro grupo de lesmas rouba as células urticantes das alforrecas e das anémonas, para depois as disparar como arpões contra os predadores. Mas, primeiro, há que comer as alforrecas e as anémonas. "Digerem tudo menos as células urticantes e utilizam-nas para defesa própria." Chama-se cleptodefesa e é outra artimanha defensiva que é única nas lesmas-do-mar. Elas guardam as células urticantes (que vêm equipadas com um ferrão venenoso) perto da sua membrana exterior, e assim que surge a ameaça é só disparar o ferrão.
Armas químicas
Outras guardam um trunfo que pode revelar-se valioso para os humanos, o das armas químicas. Fabricam ou acumulam essas moléculas tóxicas também para defesa própria, em resultado de milhões de anos de evolução. "É a estas moléculas que vamos buscar ideias para fazer novos fármacos, nomeadamente contra o cancro. São muito raras." O objectivo não é apanhar lesmas-do-mar até à exaustão para extrair moléculas; antes é inspirar-se nessas moléculas para as fabricar em laboratório.
Esta estratégia defensiva com recursos a armas químicas não é específica das lesmas-do-mar: as esponjas marinhas também a têm. Mas as defesas químicas das lesmas podem ainda manifestar-se de forma extrema, pelo menos na perspectiva humana, quando o que elas segregam é ácido sulfúrico. Um incauto que as coloque num frasco com outros seres vivos terá a oportunidade de apreciar o poder das suas defesas. "Dissolvem tudo", diz Gonçalo Calado.
Protegem-se através da cor
A criatividade delas parece não ter limites. Associadas às armas químicas, muitas apresentam cores chamativas, como se tivessem um cartaz a dizer "não me comas, que sou venenosa". Costumam sê-lo. Mas também há as lesmas imitadoras: protegem-se atrás da cópia das cores vistosas de outras espécies, essas sim, indigestas. "São comestíveis, mas os peixes não arriscam."
Já a espécie descrita por Gonçalo Calado em 2002, a Calma gobioophaga, optou por uma estratégia mais discreta. Confunde-se com o seu próprio manjar, que são ovos de peixe. "Fica da cor dos ovos que come. Se são amarelos, fica amarela, se são pretos... É difícil de ver. É das mais esquisitas."
Além do mimetismo com a refeição, não se sabe se as defesas da Calma gobioophaga incluem as armas químicas. Ela própria andava a ser confundida com outra lesma, a Calma glaucoides, até Gonçalo Calado as pôr no devido lugar, com recurso a exemplares da costa de Setúbal.
Riqueza é coisa que não falta à dieta das lesmas. Existem ainda aquelas que comem outras espécies de lesmas, embora a grande maioria das lesmas carnívoras prefira esponjas, anémonas ou corais. E às lesmas-do-mar, com tantas defesas, ninguém as quer comer.
Um mundo fantástico, em suma, feito de seres que vivem um ou dois anos, andam poucos metros por dia (mesmo as que nadam) e que povoam tanto as zonas costeiras como as profundidades abissais.

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