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A RTP exibe hoje o segundo episódio da série Conta-me Como Foi, um êxito espanhol transportado para o Portugal de 1968. As filmagens são perto de Sintra, num bairro construído de raiz à imagem da classe média dos anos 60

De um lado do estúdio, uma antiga sala de aulas, pejada de carteiras de madeira e metal da escola primária, daquelas que dão para dois alunos, com copinho verde para a tinta-da-china no tampo. Do outro, uma gigantesca tela verde vivo, um ecrã chroma para as filmagens de sobreposição, a cujos pés repousa um tapete felpudo e florido. É nestes saltos quânticos constantes que se faz Conta-me Como Foi, a nova série da RTP passada em 1968 mas filmada quase 40 anos depois.

Uma assistente raspa pratos cheios de bacalhau com grão para o balde do lixo da cozinha da família Lopes e arranja novos talheres e novos pratos para compor a cena a seguir ao ensaio. Nos Estúdios da Abrunheira há embalagens de margarina Planta com rótulos irreconhecíveis para os menores de 45 anos, aquelas caixas de plástico para a farinha e feijão que todas as famílias portuguesas tinham e todo um bairro em que o quilo de batata custa um escudo e 50 centavos. Mas em cima da mesa da cozinha há um stick de cola UHU, um frasco de Nutella e um pacote de sumo de cereja bem actual, esvaziado directamente para uma garrafa, para fazer as vezes do vinho. "Isto agora ainda está cheio de elementos anacrónicos", avisa a assistente.

Mas a tónica é totalmente anos 60 e a família Lopes vive no seu tempo. O marido funcionário público e a mulher doméstica, o filho que vai para a universidade e a filha cabeleireira que não tarda se escapa até Londres, o mais novo que narra, 40 anos depois, a vida de um país através do microscópio da sua família.

"É a vida de uma família de classe média", sintetiza Catarina Avelar, que interpreta Dona Hermínia, a avó. "O que tem de interessante é situar-se naquele tempo, com a interligação entre o tempo político e social" e com um núcleo familiar, mas também com um bairro com padre, calista, merceeiro, café, polícia, quiosque e Fiat 125 e 600 estacionados na rua.

Voltar atrás

O Portugal do entretenimento parece andar a olhar por cima do ombro, à procura do que era este país em meados do século XX, como que à procura de uma explicação para aquilo que é hoje. Olha para trás, para os Grandes Portugueses, para Salazar, para os soixante huitard criados em Portugal. Conta-me Como Foi é mais uma incursão retrospectiva da RTP, depois do concurso que deu a vitória a um ditador e em simultâneo com a série documental que faz o retrato social do país. No genérico, canta José Cid, músico coevo do êxito retumbante do Festival da Canção e que está também a beneficiar, desde o ano passado, deste flashback que é um comeback aos tempos do ié-ié.

Em Conta-me Como Foi "não há saudosismo, nem revivalismo", frisa Catarina Avelar numa pausa entre as gravações do décimo episódio da série. Mas há uma coincidência temporal de retrospectivas, que não pára na televisão - estende-se para o teatro, para os museus e para a literatura e música, assinala Miguel Guilherme, o pai António Lopes, funcionário das Finanças e tipógrafo ilícito, por acumulação ilegal de empregos em tempos de salários escassos. "Não é uma tendência só portuguesa, é uma tendência de nostalgia que se verifica também na literatura e mesmo na música, no Maxime, no recuperar de artistas dos anos 60, como o José Cid ou o António Calvário", lembra.

Miguel Guilherme está tranquilamente intrigado pelo fenómeno. "Parece que as pessoas têm uma certa necessidade de voltar a esse tempo e não só as pessoas mais velhas, os jovens também se interessam e em Espanha [Cuentame Como Pasó é a série espanhola original] aconteceu isso". "É uma necessidade, é da falta de valores!", atalha Catarina Avelar.

A actriz já se tinha estreado em palco dez anos antes da acção de Conta-me Como Foi, pelo que vê na série a oportunidade de "lembrar as coisas boas e as coisas más dessa época". Miguel Guilherme tinha nove anos em 1968 e assume que a série lhe permitiu fazer "uma viagem no tempo através dos produtos, dos anúncios, das expressões, dos carros ou da roupa. Eu tinha vários (filmes) Super 8 feitos nos anos 1960 e emprestei-os à produção e muitos estão no genérico" o que lhe provoca alguma "nostalgia".

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Já o pequeno narrador, Carlos, tem oito anos. Luís Ganito é actor desde os sete e ainda não tem tempo para sofrer de tais males melancólicos. Aponta para as botas tipo ortopédico azuis escuras e para os calções de fazenda para exemplificar "como o mundo está diferente, mudou muito". Vestido à menino da classe média baixa dos tempos da outra senhora, sentado depois de espreitar o computador onde se fala no Messenger, confessa a sua alegria por estar a fazer esta série. "A minha disciplina preferida é a História, por isso..."

As cenas de hoje são todas em estúdio, passadas na sala de jantar. É onde comem bacalhau com grão, cujo cheiro de espalha pelo estúdio, e tomam o pequeno-almoço em camisa de noite e pijama. À mesa, Rita Blanco, aliás Margarida Lopes, doméstica e futura empresária do ramo do vestuário (expressão da geração milénio para a costureira que faz serviços para fora), pontua qualquer conversa com um gracejo.

Para construir Margarida, explica, enquanto passa pelo camarim e maquilhagem, fixou-se nas palavras. "Fui buscar coisas da minha avó, algumas da minha mãe. As pessoas falavam português", ri-se, "mas é um português diferente". "A mulher, como vivia na altura, não podia falar como eu falo!". Na prática, pode ver-se no tom melífluo como a mulher tenta convencer o marido de alguma coisa, ou no "cortar as frases de outra maneira", porque "é uma questão de intencionalidade".

As falas são uma das balizas dos actores. Depois de cada cena, saem dos estúdios e atravessam os corredores para mudar de roupa ou voltar a passar texto. "O nosso problema é não usar expressões que na altura até se utilizavam mas que nesta classe média baixa, os chamados remediados, não eram tão comuns, como o "ok" ou o "tchau"", diz Miguel Guilherme. Luís Ganito tenta contornar o "fixe" e o "tá bem".

Para Rita Blanco, há um diferimento temporal em relação a uma época que não é assim tão distante, mas cujos "ritmos de vida" se traduziam na toada de cada um. "Para mim é mais divertido do que fazer coisas que já fiz, papéis actuais. Isto tem alguma graça, sabe-me bem."

É um trabalho de época, evidente pelos posters de Artur Garcia e dos Beatles na parede, pelas roupas saídas de um figurino Mary Quant, pelos autocolantes de flores nos armários da cozinha. Mas não implica, para nenhum dos actores, uma vertigem à saída da personagem, ao fim do dia, quando deixam os anos 60 directamente para os anos 00 do milénio seguinte. E a verdade é que toda a envolvente plástica, sejam as andorinhas de loiça presas na parede da varanda ou os sofás de napa e as mesas de fórmica estão por aí. Nos cafés por remodelar ou nos novos espaços de convívio vintage. Nas casas conservadas em formol-déco e nos apartamentos mais retro-chic da classe média. Esta série não é um revivalismo, asseveram os actores em uníssono. "Odeio olhar para trás, assusta-me um bocado como ideia", garante Rita Blanco enquanto se tenta livrar de uns brincos, "até porque tenho muito mais fé nas coisas novas". Que agora são as velhas, mas revisitadas.

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