Radioactividade ameaça a saúde em Canas de Senhorim
A capacidade reprodutiva dos habitantes diminuiu e há concentrações elevadas de polónio, chumbo e cobre nos organismos
a A extracção de urânio na Urgeiriça acabou há 16 anos, mas a saúde dos 3500 habitantes da freguesia de Canas de Senhorim (concelho de Nelas) continua seriamente ameaçada por aquele material radioactivo.O relatório final do projecto Minurar, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) e outras instituições para estudar as eventuais consequências da exposição às minas de urânio e aos seus resíduos na saúde da população de Canas, acaba de ser divulgado e não tem boas notícias (texto integral em http://www.insarj.pt).
As funções tiróidea e reprodutiva dos homens diminuíram e o mesmo aconteceu aos eritrócitos, leucócitos e plaquetas do sangue. Por outro lado, regista-se um aumento das concentrações de chumbo, cobre e zinco nos organismos dos habitantes. Finalmente, o aumento de concentração de polónio (proveniente do urânio) no cabelo - este é um veículo de eliminação, além de revelar a presença daquele metal pesado dentro do organismo - também não oferece dúvidas. Os resultados obtidos mostram outros efeitos, considerados menos evidentes pelos autores: diminuição da função reprodutiva (nas mulheres) e renal; e ligeiro aumento da frequência de alterações cromossómicas.
"Os dados obtidos apontam para diferenças evidentes entre a população de Canas e as populações de controlo", disse ao PÚBLICO José Marinho Falcão, investigador do INSA e coordenador do trabalho.
Os autores do estudo chegaram a estas conclusões através de dois estudos: no primeiro avaliaram a contaminação interna da população pelos radionuclidos do minério do urânio e dos seus resíduos; no segundo fizeram a avaliação dos "efeitos genotóxicos" dessa mesma exposição. Para destacar as diferenças, procederam à comparação das análises e exames laboratoriais realizados entre elementos de três grupos-alvo distintos. O primeiro era constituído por residentes na freguesia de Canas. Os outros dois eram compostos, respectivamente, por habitantes das freguesias de Queira (Vouzela), Rio de Mel e Moreira de Rei (Trancoso) - e por residentes nas freguesias de Campo da Madalena (Viseu), Sátão (Sátão). S. Pedro (Celorico da Beira) e Seia (Seia). A área do primeiro grupo tem minas, mas não tratamento de minérios, e no segundo nunca se registou qualquer actividade mineira.
As causas são estabelecidas de forma prudente. "Não temos a certeza absoluta de que elas possam ser atribuídas à mina e às escombreiras existentes [quase três milhões de toneladas de materiais com potencial de libertação radioactiva numa área densamente povoada]", diz Marinho Falcão.
Ainda assim, pode ler-se nas conclusões do estudo que "a exposição prolongada da população residente na freguesia de Canas a níveis de radiação e de metais pesados em geral superiores aos das populações das restantes freguesias constitui uma explicação plausível para essas diferenças". Esta conclusão ganha ainda mais força pelo facto de não ter sido identificada "qualquer outra exposição que pudesse ter causado os efeitos observados em funções e parâmetros biológicos tão diversos".
As soluções de requalificação ambiental têm de resolver o problema da exposição e contaminação de forma duradoura
a O estudo está concluído e a hora é de passar à acção. Esta é a opinião de Marinho Falcão, coordenador do projecto Minurar, realizado pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, com a colaboração do Instituto Tecnológico Nuclear, Instituto de Engenharia, Tecnologia e Inovação, Centro Regional de Saúde Pública do Centro e Hospital de S. Teotónio (Viseu). "O importante é diminuir a exposição das populações [à acção do urânio] e requalificar ambientalmente as minas", diz.
António Minhoto, ex-trabalhador da Urgeiriça e membro da Associação Ambiente em Zonas Uraníferas, que se tem batido pela solução do problema, manifestou ao PÚBLICO a sua satisfação com a saída do estudo, lamentando apenas que levasse tanto tempo a ser feito. A intervenção ambiental vem à cabeça das recomendações do estudo, que já seguiu para o gabinete do ministro da Saúde. Em particular, é sublinhada a necessidade de "acelerar a concretização da requalificação ambiental das zonas envolventes da mina de urânio, das instalações de tratamento do minério e das escombreiras radioactivas na Urgeiriça e noutros locais de antigas minas de urânio". Outra proposta é a aplicação de "um plano de monitorização radiológica ambiental na zona das antigas explorações de urânio".
Quanto à saúde das comunidades afectadas, o estudo propõe que se aprecie "a viabilidade de realizar um estudo" que "estime os eventuais efeitos na mortalidade e na incidência de doenças nos últimos 30 anos". Deve ainda ficar garantido que "a vigilância epidemiológica activa das populações possa ser accionável a todo o momento".
A toxicidade química e radiológica do urânio constitui um perigo para a saúde humana. No primeiro relatório do projecto Minurar, divulgado em Junho de 2005, refere-se que a exposição ao urânio "tem sido associada à incidência aumentada de neoplasias malignas, nomeadamente do pulmão, leucemia e ossos". Os efeitos crónicos, não-cancerígenos, associados à exposição humana a urânio, radão e rádio incluem anemia, abcesso cerebral, pneumonia e fibrose do pulmão. A função renal também pode ser afectada pelo consumo crónico de água contaminada.