Uns têm The Voice, nós temos A Voz
Os Sheiks e E Depois do Adeus.
Paulo de Carvalho não escapa
a esse resumo de 45 anos
de carreira. Mas há mais,
como se verá hoje em Almada
a Podemos definir Paulo de Carvalho de várias formas. A mais comum começa na "Beatlemania" à portuguesa protagonizada pelos Sheiks, de quem foi baterista, e acaba em E Depois do Adeus, a canção vencedora do Festival da Canção de 1974, que anunciará às tropas revolucionárias portuguesas o início do 25 de Abril. Essa é a sua imagem de referência. Mas existem outras, claro. A do Paulo de Carvalho dono de uma voz ágil e imponente (uns têm The Voice, nós temos A Voz), a do cantor de carreira ecléctica que estreitava laços com África, desviava-se para o funk americano e acabava a entoar orelhudas canções de música ligeira - por vezes, como nos anos 70, fazia tudo no mesmo álbum. Mais tarde chegaria o Paulo de Carvalho fadista, o Paulo de Carvalho "brasileiro", ao lado do pianista Ivan Lins, o Paulo de Carvalho que gravou com a London Symphonic Orchestra. Não, não é demais. São 45 anos de carreira bem contados e ele visita-os esta noite, no Teatro Municipal de Almada, a partir das 21h30.A acompanhá-lo estará uma orquestra de 11 músicos e duas vozes convidadas, Agir e Mafalda Sachetti. Pelo espectáculo, a que deu o título A Vida, passará a sua história, sem adulterações. Ou seja, não se esperem grandes transformações nas canções. Pragmatismo: "Não adianta muito fazer novos arranjos porque as pessoas gostam de ouvir as canções o mais parecidas possível com os originais." O P2 estava a conversa com Paulo de Carvalho numa esplanada virada para o Tejo, com a ponte 25 de Abril em fundo, e quando nos fala do concerto desta noite em Almada, gravador ligado há um par de minutos, já começavam a sobressair os contornos de uma outra imagem do entrevistado - uma menos visível, menos exposta.
Minutos antes, recebia um telefonema da tia de 85 anos. Afinal, não era para saber daquele modelo de televisão que Paulo tinha ficado de investigar. Tinha visto um artigo sobre o sobrinho num jornal diário e correu a dar-lhe a notícia. 45 anos depois de ele ter começado a tocar "com uma rapaziada lá da rua", 40 depois de ter apostado tudo na música - quando se tornou impossível conciliar o rock"n"roll nos Sheiks, o trabalho numa agência de seguros e os jogos a interior direito nos júniores do Benfica -, tanto tempo depois, dizíamos, a família ainda lhe telefona, entusiasmada com a foto do Paulo nos jornais. Ele justifica-o com as suas origens modestas e com a grande surpresa que foi para os familiares vê-lo tornar-se figura celebrada do meio artístico português.
Paulo de Carvalho, "compincha" como entrevistado e conversador entusiasmado, sorri perante a situação. O homem que surpreendemos junto ao rio é um homem consciente da sua posição no grande plano da música portuguesa, mas desassombrado, de uma forma desarmante, perante esse passado. Atente-se nisto que nos diz, entrevista caminhando para o seu final: "Sabe, não dou muita importância ao que faço."
"Pessoal mais novo"
A surpresa, a nossa, esbate-se um pouco com as afirmações que se seguiram: "Por não dar muita importância é que já passaram 45 anos e nem dei por isso. Provavelmente é um erro. Devíamos defender mais o que fazemos e tratar mais da nossa vidinha, mas eu nunca tratei nada da minha vidinha."
Não se veja aqui o desvalorizar de uma carreira que é uma vida. Ao contrário de muitos companheiros de geração, Paulo de Carvalho não vive amargurado com o ocaso mediático a que muitos foram votados com o passar dos anos. Ele que, a determinado momento, desabafa preferir trabalhar com "pessoal mais novo" - "os da minha geração são uns chatos" - disparou esta da "vidinha" para eles: "A vida anda para a frente e temos que ter noção do que nos rodeia. Não podemos ser tão azedos só porque a terra onde vivemos não dos dá o valor que nós achamos que devíamos ter. Tudo tem um tempo. A única mágoa que posso ter, em Portugal, é que o mercado não permita que haja lugar para todos. Sei que não posso, na minha idade, na nossa terra e com o nosso nível cultural, ter o nível de sucesso de há uns anos atrás."
Retomamos aqui aquele surpreendente "não dou muita importância ao que faço", apenas para o completar com a ilustração que se seguiu: "Fui fazendo música conforme podia, gostava e me apetecia". Foi por ela que passeámos a maior parte da entrevista - e não há como não lhe dar importância. Continuamos a querer saber quem é Paulo de Carvalho.
Tudo começa com os Sheiks, primeira banda a sério depois da "rapaziada lá da rua". Em três anos, tornaram-se no maior caso de sucesso pop do Portugal de 60 - merecidamente. Aprenderam os truques dos Beatles e seguiram em frente, "yeah-yeah" na ponta da língua e guitarras prontas a disparar electricidade. Por breves momentos, Portugal aproximou-se da sonhada Londres e teve a sua Beatlemania. Um simulacro de revolução juvenil que Paulo de Carvalho, muito pragmaticamente, põe em perspectiva: "Acredito que houvesse gente do campo ou do operariado que soubesse o que era lutar socialmente, mas esse não era o nosso caso. Tínhamos 18, 19 anos. Queríamos música e miúdas." Tiveram mais que isso. Tiveram "18 mil índios aos gritos na Feira Popular do Porto", num concerto a que chegaram vindos de avião de Lisboa, conduzidos do aeroporto ao recinto num "Chevrolet enorme" - chofer fardado incluído. "Foi um golpe de marketing bem montado. Investimos todo o dinheiro do cachet numa viagem de avião, num motorista e numa estadia no Hotel Infante Sagres, mas [a actuação] deu-nos trabalho para dois anos."
Esta Beatlemania à portuguesa permitiu o primeiro marco de sucesso aliado a criatividade do rock português - ao contrário do apregoado por teorias "revisionistas", a história começou em 60, não duas décadas depois -, permitiu a Paulo de Carvalho abandonar o trabalho na companhia de seguros - "enquanto Sheik, ganhava provavelmente três vezes mais que o administrador" -, permitiu aos elementos da banda experimentar ambientes mais cosmopolitas que o permitido em Portugal. Em Dezembro de 1966, substituíram os Troggs num clube parisiense. A ideia inicial, conta-nos agora Paulo de Carvalho, era "fugir". "Como três de nós estavam perto de ser mobilizados para o serviço militar, a jogada era nunca mais por os pés em Portugal."
Como sabemos, o destino não quis que assim fosse. Carlos Mendes decidiu regressar para completar o curso de arquitectura e a banda, sem o seu vocalista, voltou com ele. Sem vocalista? Mas não tinham um atrás da bateria, ele que até dava voz ao segundo êxito dos Sheiks, Tell Me Bird? "Eu não tinha ainda descoberto que podia cantar sozinho."
Iria descobri-lo na segunda instituição que, depois dos Sheiks, se lhe atravessou no caminho. Não foram os Thilo"s Combo, o conjunto liderado por Thilo Krassman onde aprendeu "a tocar bateria a sério" e onde cantava um par de canções de Aretha Franklin, "no tom dela" - "a minha voz era muito apreciada, mas era uma espécie de circo". Não, a "instituição" de que aqui se fala é outra, uma que parava o país uma vez por ano. Foi nela que Paulo de Carvalho, o baterista, teve "a certeza e segurança" que podia cantar sozinho. Isso mesmo: O Festival da Canção. Estreou-se em 1970, com Corre Nina e por lá continuou.
O smoking e a contestação
O 25 de Abril estava a quatro anos de distância mas a revolução era coisa distante para o adolescente Paulo de Carvalho. "Um acto contestatário da minha parte? Na primeira vez que fui ao Festival da Canção, Melo Pereira, o organizador, disse-me para não me esquecer do smoking. Foi o bastante para não o fazer. Portanto, fato normal, camisa aberta. Era essa a contestação, a normal de um miúdo de 19 anos."
Dos tempos em que a rebeldia juvenil se transforma em consciência revolucionária, depois de 1974, eis o que guarda na memória: "A revolução trouxe uma coisa maravilhosa que foi a vontade de ir ao cinema, de ler livros e de ouvir música e, sobretudo, a vontade de discutir as coisas uns com os outros." Foi o que fez, "discutindo" e colaborando com Ary dos Santos, com Fernando Assis Pacheco, com o moçambicano Virgílio Massingue ou com o lisboeta Carlos do Carmo.
Se se sente ambivalente perante E Depois do Adeus - orgulha-se de figurar na história, mas não gosta da "prateleira" onde o colocaram, como se "não tivesse feito mais nada depois disso" -, com a música portuguesa, vista como laboratório de experiências da lusofonia, vive e viveu uma relação forte e duradoura. Criou verdadeiros standards da música nacional, como Dez Anos ou Nini dos meus Quinze Anos, traduziu África em sotaque lisboeta nos Meninos do Huambo, cantou o fado e fez ponte entre Cabo Verde e a Galiza em Música D"Alma, onde colaborou com Tito Paris e Vicente Amigo.
Quando o gravador se desligou e o fotógrafo do P2 buscava enquadramentos para a sessão de fotos que se seguiria, Paulo de Carvalho diz-nos que devíamos aproveitar o rio. "Sabe, eu tenho muito de Lisboa." Pois tem, dessa Lisboa dos fados de Alfama e do Castelo, dessa Lisboa cosmopolita no Chiado e no Rossio, dessa Lisboa virada para o mar que se estende bem para além do que a vista consegue vislumbrar - como se percebe, esta Lisboa é muito mais que a cidade visível. Paulo de Carvalho, 59 anos, marcou-lhe a paisagem e tornou-se dela parte indissociável. Um feito assinalável para alguém que há 45 anos não dá "importância nenhuma" ao que faz.