Grande Prémio EDP 2007 para Eduardo Batarda
Júri escolheu por unanimidade uma obra das mais radicalmente singulares da pintura portuguesa contemporânea
a É provável que Eduardo Batarda estivesse incontactável, nos fundos dos Uffizi, em Florença, à hora em que o júri constituído por António Mexia, Eduardo Lourenço, Alexandre Melo, João Marques Pinto, João Pinharanda, Raquel Henriques da Silva e Vicente Todolí decidiu atribuir-lhe por unanimidade o Grande Prémio EDP 2007, no valor de 35 mil euros. Não é casual: foi também isso, o facto de passar horas, há anos, a estudar o desenho antigo (e o facto de ser um "professor mítico") que levou a Fundação EDP a tomar esta decisão "ao mesmo tempo evidente e inesperada", diz João Pinharanda, que além de membro do júri é consultor da fundação. Mas é sobretudo uma obra o que este prémio celebra: "Uma das obras mais originais da pintura contemporânea - mesmo a nível internacional", sublinha o crítico Alexandre Melo.Natural de Coimbra, onde nasceu em 1943, Eduardo Batarda chegou a inscrever-se em Medicina, mas não ficou mais de um ano no curso (a universidade dele foi mais a universidade das crises académicas). Licenciado pela ESBAL, em 1968, foi depois bolseiro da Gulbenkian em Londres, onde frequentou o Royal College of Art entre 1971 e 1974 (ainda estava lá quando teve uma filha, a actriz Beatriz Batarda) e se interessou, em total contracorrente, pela aguarela. No final da década de 70, radicou-se no Porto - onde continua, até hoje, a dar aulas na Faculdade de Belas-Artes (actualmente em licença sabática, justamente para estudar o desenho renascentista e maneirista em Florença e Paris). Mas nunca foi, ao contrário do que escreveu na sua autobiografia (ver caixa), apenas "um funcionário público"(até como professor, estudioso e crítico de arte tem "um trabalho raro", nota Alexandre Melo): foi também um dos mais extraordinários pintores da segunda metade do século XX.
"A obra do Eduardo Batarda é extremamente original - e radical nessa originalidade. Em 40 anos de carreira, ele teve sempre um trabalho fortíssimo e absolutamente pessoal, no sentido em que afirmou continuamente uma diferença, uma especificidade às vezes quase provocatória em relação ao que eram as correntes mais vistas, mais faladas e mais visíveis em cada período", diz Alexandre Melo. Esteve sempre "num lugar à parte", completa Miguel Von Hafe Pérez, crítico e coordenador do projecto Anamnese, o quem é quem da arte contemporânea portuguesa: "Numa altura em que a arte conceptual ganhava uma visibilidade completamente hegemónica no contexto internacional, com repercussões óbvias em Portugal, o Eduardo Batarda fazia aguarelas altamente narrativas e com uma visão muito sarcástica da realidade pré-25 de Abril. Acima de tudo, o que caracteriza o trabalho dele é uma reflexão muito profunda sobre a pintura enquanto meio e sobre a imagem como possibilidade de comunicação. Fez todo um trabalho em torno da realidade pictórica totalmente em contramão". "É uma obra que sempre colocou desafios - ao próprio Batarda e à arte contemporânea. Ele nunca se acomodou a uma linguagem, fosse essa linguagem a que ele próprio tinha criado ou a linguagem da época. Sempre procurou ser incómodo para ele e para os outros - e foi de facto um artista paradoxal na relação entre a contemporaneidade da sua pintura e a erudição que vem do seu profundo conhecimento da história da arte. Não se deixa, de facto, classificar, porque soube construir uma singularidade", acrescenta ainda João Fernandes, director do Museu de Serralves.
Por ter estado sempre nesse lugar à parte, Eduardo Batarda nunca foi propriamente evidente para o grande público - a única grande exposição antológica foi organizada em 1998 pelo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. "Também é isso que esperamos do artista premiado: que ele nos permita fazer uma exposição e um catálogo com coisas que as pessoas nunca viram", nota João Pinharanda. E as pessoas não viram demasiadas coisas de Batarda - verão em 2009, na sequência deste Grande Prémio EDP 2007, tal como viram, no passado, as coisas de Lourdes Castro, Cesariny e Álvaro Lapa (vencedores em 2000, 2002 e 2004).
35.000 O Grande Prémio EDP é atribuído de dois em dois anos e vale 35.000 euros. Cesariny foi um dos vencedores
Finalmente. Depois de, em 2001, ter sido preterido em favor de Pedro Calapez, que, nesse ano, arrecadou o Prémio EDP de Pintura, Eduardo Batarda vê agora ser-lhe atribuído, pela mesma entidade, um galardão destinado a consagrar um percurso singular no campo das artes plásticas portuguesas. E é mais do que merecida esta distinção, porque, desde a década de 70, este artista produziu um corpo de trabalho de uma solidez inabalável. Tudo aquilo em que tocou tem resistido à passagem do tempo, mantém--se actual, e as suas últimas exposições apenas servem para confirmar essa excelência.
Eduardo Batarda é um artista cinco estrelas; um caso de persistência numa disciplina, a pintura, que pratica como poucos, aliando o tempo do saber ao saber do tempo: o seu trabalho reinventa a cada instante esse lugar de uma arte cada vez menos independente dos discursos a ela associados. Ao verbo, sempre acidamente humorado, o premiado associa a técnica ímpar, um modo de fazer sempre iluminado por detalhes destinados aos mais atentos. Dir--se-ia que a sua obra responde a um país onde a cultura, o ser culto, como Batarda o é, constitui uma maldição. Por isso, este é também um artista maldito.
Numa (auto?) biografia que pode ser consultada no site da Fundação de Serralves, lê-se, entre outras considerações: "Vive de expedientes, na qualidade de funcionário público. É um burocrata convicto e de grande talento. Não vai bem com o traje académico o seu porte animalesco - nem os modos boçais. Nunca foi criatura para "trinta minutos", e quase não tem prática de "conversas nocturnas", partilhando com todos os portugueses o consumo imoderado de televisão e de substâncias tóxicas. Não é, no entanto, responsável por quaisquer plaquettes de versos ou livros de poemas, mesmo que infantis."
Irónico até ao fim, essa qualidade determinante para um olhar lúcido sobre a situação, Eduardo Batarda protagoniza, de facto, discretamente, uma resistência chamada pintura. Desde a sua primeira exposição individual, no revolucionário ano de 1968 (Galeria Quadrante), até hoje, seja em aguarela ou acrílico, figurativo ou abstracto, pop ou porno, popular ou erudito, colorido ou negro, o seu trabalho provoca emoções fortes. É assim a melhor arte. Um exemplo de vida. Óscar Faria
35.000
euros é o valor do Grande Prémio EDP, que é atribuído de dois em dois anos. Mário Cesariny foi um dos vencedores