O novo Tolkien Não me submeto, faz o teu pior
J.R.R. Tolkien tem um novo livro nas bancas, mais de 30 anos após a sua morte. É fruto do trabalho de edição de um dos seus filhos, Christopher, sobre milhares de manuscritos e apontamentos deixados inacabados
a É altura de regressar à Terra Média, onde elfos e a magia se cruzam no mesmo tempo e no mesmo espaço que os homens. Há um novo livro de J.R.R. Tolkien nas bancas a partir de hoje - lançamento mundial, em Portugal, pela mão da Europa-América -, editado pelo filho mais novo do famoso escritor britânico que passou as últimas três décadas a trabalhar nos manuscritos deixados inacabados pelo autor de O Senhor dos Anéis sobre uma das mais importantes histórias do legendarium de Tolkien.E é de esperar uma sensação editorial: não apenas pelo tempo de espera por este primeiro livro de Tolkien a ser editado desde 1977, mas também porque Os Filhos de Húrin contêm oito ilustrações e 25 desenhos do veteraníssimo Alan Lee, autor das mais míticas imagens jamais publicadas da Terra Média, que conquistou o Óscar de direcção artística com a versão cinematográfica de O Regresso do Rei, último filme da trilogia de O Senhor dos Anéis.
Os peritos na obra de Tolkien apostam que Os Filhos de Húrin - com grandiosas cenas de batalha e, pelo menos, uma prometida grande revelação - tem potencial cinematográfico. Acima de tudo esperam que traga as pessoas de volta aos livros do escritor. "A trilogia cinematográfica de O Senhor dos Anéis captou muitos novos fãs em todo o mundo e mesmo se apenas 20 ou 30 por cento deles lerem o novo livro, isso é já um grande sucesso editorial", avaliou Marcel Bülles, presidente da Sociedade Tolkien alemã.
A história d"Os Filhos de Húrin começou a ser escrita em 1918 e foi revista e reescrita ao longo dos 40 anos seguintes por J.R.R. Tolkien, em inúmeros manuscritos e apontamentos. Muitos versando sobre os mesmos acontecimentos, amiúde rumando em direcções diferentes. "Tolkien tem isto de muito peculiar: um cuidado de linguagem extraordinário e uma concepção de enredo fantástico, de forma a que, quando revia algo, acabava com o dobro das páginas escritas que já eram uma outra história", conta o especialista alemão.
Por isso não terá sido fácil a tarefa de edição de Christopher Tolkien, o filho mais novo de J.R.R., por ele designado seu executor literário. Foi, aliás, também graças a Christopher, professor de Inglês em Oxford, que O Silmarillion foi editado, em 1977, quatro anos depois da morte do pai, aos 81 anos. Seguiram-se Os Contos Inacabados (1980) e The History of Middle-earth (1983-1996, sem edição em português), pelo mesmo método aturado de edição de centenas ou milhares de manuscritos.
A história de Húrin, como outras da grande mitologia de Tolkien, é desconhecida para muitos, tendo sido dispersamente abordada, sob várias formas e em diferentes extensões, em O Silmarillion, n"Os Contos Inacabados e em alguns capítulos dos 12 volumes da detalhadíssima History of Middle-earth.
Lendas estranhas
É uma daquelas lendas de Tolkien com "fama de estranhas e inacessíveis em forma e estilo", nota Christopher Tolkien no prefácio d"Os Filhos de Húrin, aludindo ao abismo de popularidade que existe entre o legendarium de J.R.R. Tolkien e O Senhor dos Anéis, 200 milhões de cópias vendidas em todo o mundo, em 39 línguas, desde a primeira edição em três volumes entre 1954 e 1955. Sem esquecer, inevitavelmente, a trilogia cinematográfica que, pela mão do realizador Peter Jackson, apresentou a milhões, pela primeira vez, a Terra Média.
Ao autonomizar Os Filhos de Húrin - que J.R.R. considerou ser uma das três lendas mais importantes da Primeira Era -, Christopher Tolkien quis "abrir uma janela para um cenário e uma história situados numa desconhecida Terra Média".
É uma história de um passado muito distante - 6500 anos antes de a Irmandade do Anel depositar em Frodo todas as esperanças de salvação da ameaça apresentada por Sauron aos Povos Livres -, quando nem sequer existia a raça dos hobbits, mas com muito a soar familiar. Há nomes conhecidos - Elrond mencionou o nome do filho de Húrin, Túrin, a Frodo, no Grande Conselho de Rivendell, identificando-o como "um dos poderosos amigos dos elfos de antigamente" - e sabe-se, também desde O Senhor dos Anéis, que há uma espada que os elfos e os anões não deveriam forjar nem Túrin empunhar.
Este novo livro "não terá a dimensão de O Senhor dos Anéis", crê Maria do Rosário Monteiro, professora de Literatura Comparada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, cuja tese de doutoramento explorou muito da complexidade narrativa de Tolkien, autor em quem encontra uma "linguagem poética riquíssima". "Devemos esperar conflitos éticos dos valores que são familiares na obra de Tolkien: amizade e compaixão, sacrifício, capacidade de transcendência. Mas a uma escala muito maior do que se encontra em O Senhor dos Anéis", defende.
Aceitar a tragédia
Inseparável do mesmo universo mitológico que gerou O Senhor dos Anéis, e antes O Hobbit, a história d"Os Filhos de Húrin é muito mais sombria e em nada esperançosa. "Aqui não há espaço para o riso, não vamos encontrar nenhum personagem a contar uma piada", avisa Marcel Bülles.
Os heróis são corajosos, mas também imprudentes e arrogantes, capitulando inexoravelmente às subtis armadilhas do Deus do Mal, Morgoth. "Esta personagem negativa é muito mais fascinante e muito mais complexa do que Sauron", avalia Maria do Rosário Monteiro. "O inimigo é agora a própria divindade, a encarnação do mal absoluto, um anjo caído que corrompe tudo."
Morgoth não quer apenas dominar os chamados "povos livres", como Sauron. "Ele é o mal que quer ser reconhecido: quer dominação e ser adorado, ele quer a subjugação", avança Michael Drout, professor de Literatura Inglesa da Universidade de Wheaton, onde lecciona sobre o trabalho de Tolkien. "Morgoth exige a Húrin que se submeta e ele recusa, aceitando o destino trágico que tal comporta. Ele diz ao Deus do Mal "não me submeto, faz o teu pior" e em nenhum momento espera a salvação."
Por isso Drout encontra na lenda de Húrin a intenção de Tolkien em clarificar algumas das suas filosofias sobre a coragem: "Esta é a coragem dos que sabem que vão perder, algo que está profundamente ligado aos mitos nórdicos, especialmente ao épico poético finlandês Kalevala, onde Tolkien, aqui como em muitos outros aspectos de Os Filhos de Húrin, foi buscar inspiração."
"A escrita de Tolkien tem esta peculiaridade de dar a sensação de estarmos a ler algo muito, muito antigo. Tem essa ressonância de antiguidade e intemporalidade da Ilíada e da Odisseia mesmo se utilizando a linguagem moderna", avalia Drout, que vê no escritor britânico "um criador de mundos como não há muitos".
Mas Tolkien, sublinha, "é antes de mais um escritor a quem a linguagem fascina" e, mais, "um escritor experimentalista, no sentido moderno". "James Joyce fez experiências com o som e o sentido das palavras, Tolkien inventou as palavras. É curioso que seja tão criticado pela corrente moderna com o argumento de que levou as experiências longe demais" e que, por isso, seja amiúde votado para uma "categoria à parte".