Torne-se perito

Zeca Afonso vira tropical

Zeca Afonso fez em 1975 uma canção para libertar Alípio de Freitas, então preso no Brasil. Três décadas depois, Alípio preside à Associação José Afonso e a sua filha lança hoje um disco só com versões brasileiras de temas dele. Uma história improvável

a A primeira e única vez que José Afonso cantou no Brasil recebeu uma vaia monumental. Foi em 1972, num festival da canção no Maracanãzinho, onde ele enfrentou, de viola nas mãos e a cantar "A morte saiu à rua", uma multidão ruidosa. À época, não esteve mal acompanhado: também Astor Piazzola e Caetano Veloso recebiam vaias gigantescas.O episódio passou e, um ano depois do 25 de Abril de 1974, José Afonso dedicou uma canção a um padre transmontano que no Brasil se tornara guerrilheiro e ali fora preso. Dizia assim: "Baía da Guanabara/ Santa Cruz na fortaleza/ Está preso Alípio de Freitas/ Homem de grande firmeza// Em Maio de mil setenta/ Numa casa clandestina/ Co"a companheira e a filha/ Caiu nas garras da CIA." Alípio, que se tornara uma lenda viva da resistência à ditadura militar brasileira ficou quase dez anos na cadeia, até à democracia raiar no Brasil, em 1980. Tornou-se amigo de José Afonso e seguiu-o de perto até que uma doença degenerativa o levou. Hoje, Alípio é presidente da Associação José Afonso. E a filha citada na canção, que se tornou cantora, gravou um disco só com versões brasileiras de canções de Zeca Afonso. Fecha-se um ciclo.
Quando morreu a mãe, Luanda Cozzeti de Freitas (assim se chama a filha de Alípio) quis deixar o Brasil, rumo a Portugal, onde nasceu e vive o pai. Foi há dois anos e, desde então, ela e o marido (Norton Daiello, baixista) lançaram um disco: Puro, com clássicos do cancioneiro do Brasil em versões só de voz e baixo eléctrico. Hoje lançam o segundo: Co"as Tamanquinhas do Zeca!, versões brasileiras de 16 canções de José Afonso, também para baixo e voz, mas acrescidos de guitarra eléctrica e percussões, com os músicos Ruca Rebordão e Sérgio Zurawksi. A edição é da Transformadores.
Gravar, não gravar
"É engraçado que ficou um disco da minha mãe e outro do meu pai", diz Luanda. "Puro tem o reportório que eu ouvi a vida inteira com a minha mãe. E este, apesar de a minha mãe adorar o Zeca Afonso - porque há uma gratidão, muito grande, nossa, em relação a ele -, tem as cantigas que eu aprendi com o meu pai. Este disco é para ele."
Até hoje, apenas uma canção do reportório de José Afonso conhecera versão brasileira: Milho verde, um tema popular da Beira Baixa, na voz de Gal Costa. O disco de Luanda e Norton, num duo que dá pelo nome de Couple Coffee (casal café, à letra, porque são ambos loucos por cafeína), vem alterar isso. Com o pormenor, afectivo, de Zeca ter cantado o pai (a canção chama-se Alípio de Freitas) e agora a filha o cantar a ele. "Não tenho distanciamento emocional para cantar a canção do meu pai. Mas cantei-a em Guimarães e chorei que nem uma pata. Chorei eu e chorou a plateia." No disco, o próprio Alípio pediu-lhe para não gravar. E ela concordou: "Esse tipo de catarse não é a minha."
Mesmo assim, foi para ela irresistível fazer este disco. Cresceu com estas canções e afeiçoou-se a elas. Nascida em Brasília, a 25 de Setembro de 1968, Luanda Cozetti passou a infância a visitar prisões, ora a do pai ora a da mãe (Wanda Cozetti, historiadora e também guerrilheira). A música que hoje grava traz-lhe partes desse passado para um presente que ela vive com entusiasmo e onde até as lembranças mais dolorosas parecem ser regeneradoras. A memória de José Afonso, por exemplo: "Na última ou penúltima vez que vim a Portugal, estava ele bem doente. A morte já lá estava, pacientemente, sentada à sua cabeceira, à espera do tempo acabar. Lembro-me muito bem dessa sensação, das janelas da casa, abertas, sempre com muitos amigos, muita gente. E ele de pijama, deitado, já muito magro, perguntou: "É a menina da canção?"." Disseram-lhe que era e essa imagem nunca mais a abandonou. Esteve depois no funeral e viu milhares de pessoas chorá-lo. "Nos cafés, nas ruas, foi impressionante."
O Zé e o Cafonso
Há outra imagem que ela guarda, verdadeira ou não. Conta-se que certo dia levaram um menino até à estátua de José Afonso, na Amadora, dizendo-lhe: "Este aqui é o Zeca Afonso." O menino terá olhado e respondido: "Que era Zé, eu já sabia. Agora Cafonso?" Luanda diverte-se com a história: "Acho isso emblemático da relação do Zeca com as novas gerações. Para os mais novos já há um certo eco, já é o Cafonso." E trauteia a brincadeira que ficou gravada no final do disco, já em fade-out: "Cafonso/ gajo porreiro/ que foi cantar até no Rio de Janeiro..."
A preparação do disco foi feita em quatro fases. Norton: "A primeira foi para escolher reportório, ler biografias, ver livros, ver fotos. A segunda foi para ver como as canções deveriam ser feitas." Ela: "O que iria virar samba, virar baião, ter baixa voz, etc." Ele: "Mas reservando a mensagem da música, a emoção original. A terceira vez foi para usar a caneta: escrever tudo e ver o que se podia mudar." A quarta foi, claro, a gravação, onde os ritmos só levemente se insinuam (entre as malhas de Teresa Torga espreitam, por exemplo, acordes de Black Dog, porque Norton é fã confesso dos Led Zeppelin).
No disco, Luanda e Norton quiseram contar uma história. Feita das histórias de José Afonso, mas arrumadas de outra maneira. "Uma viagem com o Zeca, mas de modo a que no Brasil não precise de glossário ou nota de rodapé. Começa com o Primo convexo, que para mim somos nós, brasileiros, africanos, terceiro-mundistas, até ibéricos, que estamos aí sentados à sombra da bananeira. Depois, pegamos o Comboio descendente, chegamos na estação e encontramos o Cafonso, que nos leva pelo Alentejo, pelo Maduro Maio, pelo Menino d"oiro. Até que vem o [António] Quadros [pintor], que com as suas Sete fadas avisa que algo vai acontecer." E acontece: "O avô cavernoso, o momento mais escuro do disco, como se o comboio entrasse num túnel. Depois vem a Balada do Outono, que teve um trabalho extraordinário do Norton no contrabaixo. É aquela história: ou o poeta se cala ou calam o poeta. Eu acho que às vezes o poeta decide calar-se, para que notem o seu silêncio. Vêm então os Vampiros, que acho a definição do capitalismo mais perfeita do mundo. E a Teresa Torga, que mostra a indiferença pelo ser humano." Até que chega Era um redondo vocábulo, canção que ela temia. "Quem já passou por salas de espera de presídios entende essa relação: angustiados, todos esses sentimentos estão na sala de espera da nossa existência. Enquanto, lá fora, a vida continua."
A delicadeza de Zeca
Que amor não me engana é o passo seguinte: "É um samba antigo, à Clara Nunes. Não precisa de pandeiros, nem tamborins. Sente-se que é um samba apenas pela sugestão. A seguir vem a Canção do mar, a que eu chamo a canção da sereia desiludida, e o Menino do bairro negro, como um samba apolíneo. Depois, enquanto metade dos meninos do mundo acordam, a outra metade dorme: é a canção de embalar. Uma das palavras que o Zeca mais repete, nas canções dele, é meninos ou meninas. É de uma delicadeza, isso..."
Ao embalo, sucede Utopia: "É o verdadeiro testamento dele. As palavras pelas quais acho que ele gostaria mesmo de ser lembrado. Cantá-las não dava, porque a interpretação dele é sublime. Eu não acrescentaria nada. Como é um poema, resolvi dizê-lo, apenas. Gravei-o, falado, mantendo a rítmica das palavras. O Norton pôs o baixo depois." O fim é Com as minhas tamanquinhas: "No Brasil, quando se sobe nas tamancas é porque se tem algo importante para dizer." Ele disse, cantando. E eles cantam, dizendo.

Couple Coffee

LISBOA Music Box. Rua Nova do Carvalho, 24 (ao Cais do Sodré).Tel.: 213430107
Hoje, a partir das 22h. Convidado especial para programação: Alípio de Freitas. Com apresentação, ao vivo, do disco "Co"as Tamanquinhas do Zeca!". Entrada: 8 euros

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