Odete jamais será vencida
É capaz de subir e descer escadas a dizer de cor páginas inteiras de Gil Vicente. Comunista de ontem e de sempre, como uma loba a defender as crias. A partir de hoje, Odete Santos, não-deputada. Ainda vai a Florença
Alexandra Lucas Coelho (texto) e Rui Gaudêncio (fotos)
De saia, na crítica, na saídaFaz sentido subir a escadaria à entrada do Parlamento com uma certa crítica de teatro na cabeça, nesta manhã chove-não-chove.
Porque raros são os deputados que toda a gente conhece pelo primeiro nome, e nenhum que seja tanto uma questão de pele como este, que aliás é esta, e aliás é actriz, mas daquelas que já eram antes de o ser e serão.
E como haverá quem só se lembre de arruaças televisivas, rimas de Parque Mayer e todo o espalhafato que não-fica-bem, sigamos escada acima com a prosa da tal crítica que celebra a actriz Odete Santos.
"Ela tem energia para, como se costuma dizer, uma casa de família. Sabe-o toda a gente que já a viu em actividade no Parlamento. Mas é no palco, na pele de Martha, que Odete Santos, a deputada comunista, se torna mais electrizante, mais segura de si, mais igual a si própria." Quem isto escrevia, em Abril de 2000, no PÚBLICO, era Manuel João Gomes, espectador de teatro como poucos em Portugal.
Nessa "orgia de sábado à noite" que é Quem tem Medo de Virginia Woolf, de Edward Albe, continuava o crítico, "assiste-se ao raro prodígio de uma actriz que acaba por mobilizar também as mais temíveis energias dos actores que a rodeiam".
Odete não só espevitava os moribundos na plateia como os outros actores em palco, e nem precisava de vestir calças - "mesmo de saia, é ela quem comanda o jogo". Generoso e vasto leitor, assim apanhou Manuel João Gomes a figura vicentina que tinha diante dos olhos.
Uma mulher capaz de sair de uma farsa de Gil Vicente para entrar um filme de Fellini, com um desvio para defender uma operária no Tribunal de Setúbal à hora de almoço.
E isto da hora de almoço é à letra.
Várias causas ganhou a também advogada Odete Santos indo num pulo a Setúbal, de onde já saíra de manhã e a onde havia de voltar à noite - porque é a sua terra, desde os 10 anos, quando a família, beirã da aldeia de Pêga, desceu ao Alentejo.
Agora vai a caminho dos 66 anos e nesta manhã-ainda-não-chove chegou há pouco ao Parlamento para o que será um infernal dia de cima a baixo no labirinto da Assembleia da República, ao fim de 26 anos de muitos infernais dias de plenário. Porque todas as televisões e todos os jornais querem captá-la no seu penúltimo dia de deputada, e não é possível avaliar a dimensão do sobe-e-desce parlamentar. Em alas históricas ou pós-modernas, os degraus, laterais, centrais ou subterrâneos, são demasiados.
Primeira escada do dia, pelas 11h, a caminho da entrevista que abre a agenda, "Diário de Notícias".
E às 12h30 aí vem ela de vermelho escuro, cabelo, casaco e sapatos. Sapatos com laço na ponta e já sem tinta no calcanhar, cambados. Casaco de mãos nos bolsos a deformar o veludo e gola torta na nuca. Cabelo vermelho com sobrancelhas pretas.
Alguém que se arranjou para este dia, mas não tem jeito para acreditar demasiado nisso. Nem cuidar um pouco das unhas, quanto mais. Era para vir de calças, mas quando ia a sair de casa descobriu que "estavam descosidas" e então está de saia, como na crítica.
A propósito.
Pergunta on the road, enquanto a deputada trota corredor fora, para recuperar o atraso na agenda: "Lembra-se daquela crítica... ?"
Odete Santos pára e leva a mão ao peito, como se tivesse levado um tiro. Se se lembra. É um atalho para toda uma outra vida. "Arranje-me uma cópia, nunca a guardei..."
E com a SIC lá adiante, à espera, e a assessora de imprensa Paula Barata atrás, toca a andar, sem parar nem quando a deputada Celeste Correia vem dar um beijinho e falar naquele "anúncio da mariscada" na rádio. "Parece a tua voz!", insiste a socialista, tentando acompanhar o ritmo. "Não quero saber!", vai dizendo Odete Santos. "Que me imitem, que digam mal de mim!"
E cá estão os degraus, que ela tem de descer devagar, pondo os dois pés em cada um, mas despachando a agenda de caminho. "Esse programa Praça da Alegria, isso é em Lisboa... ai ao Malato vou, vou."
Um patamar para onde convergem várias escadas chama a atenção do fotógrafo Rui Gaudêncio, que lhe pede para parar uns segundos. E logo Odete Santos fica imóvel, de mãos nos bolsos a arrepanhar o casaco para a frente, e a voz-que-todos-conhecem ecoando pelas galerias, vinda lá do fundo.
Ao chegar, vinha zangada com o que o tablóide 24 Horas lhe fizera, pô-la de língua de fora na capa. Mas uns minutos de conversa com Gaudêncio e decidira que por uns não devem pagar outros. É de quem não remói e avança.
"Gosto do Malato, sim senhor", prossegue, subindo outra vez os degraus que descera para as fotos. "Até colaborou na campanha do sim..."
De derrota em derrota até à vitória final, o que esta mulher investiu de trabalho no sim à despenalização do aborto. E agora sai do Parlamento, mas com ele debaixo do braço, ainda que não seja o sim que queria.
O regresso do marisco
O primeiro-ministro vai à televisão logo à noite mostrar papéis. A polémica da licenciatura é o hit da actualidade.
"Quer ver o meu diploma?", lança, mal avista Anabela Neves, a repórter parlamentar da SIC. E com a comitiva agora engrossada pela equipa de televisão, o grupo prossegue corredor fora.
"Sra. deputada, já tenho saudades!", exclama o deputado Ricardo Rodrigues, que não precisa de mais palavras para mostrar que é da Madeira. Beijinhos quase em movimento e Odete segue.
"É uma deputada... particular", declara o madeirense, instado pelo P2 a pronunciar-se. "Prepara sempre muito bem as intervenções, com uma disponibilidade a cem por cento para o Parlamento, socorrendo-se da sua experiência de direito comparado e de advogada. É um prazer trabalhar com ela."
O cortejo vai agora a descer aquelas escadas novas que levam a uma ala de gabinetes de deputados. O dela é o 4060, partilhado com dois camaradas, Francisco Lopes e Miguel Tiago.
Segue-se o que os telespectadores já terão visto. Odete no meio de uma pilha de papéis, a falar de como aquela secretária continuará a ser sua e voltará com frequência à Assembleia, de como foi das primeiras no Parlamento a usar computadores (a assessora de imprensa faz que sim, veemente), e dos seus três cães e uma gata e meia (mais sobre isto à hora de almoço).
Isto findo, lá vem outra vez Celeste Correia dizer que ainda agora ouviu na rádio qualquer coisa como marisco unido jamais será vencido. "E é a tua voz!" Odete Santos não liga peva. Vê as notícias que recebe no telemóvel: "Sócrates, a Independente..."
Estamos a andar para os Passos Perdidos, esse magnífico nome à volta do qual todos os deputados circulam.
A SIC quer filmar a sala do grupo parlamentar do PCP. A caminho continua a verificação da agenda do dia seguinte. "Esse programa do Portugal é das 7h às 10h?"
Mas a sala está vazia porque é hora de almoço. Odete Santos, que quer ir almoçar já, remarca logo a filmagem para as 14h30.
E convida o P2 para descer à cantina.
A cantina das senhas a seis euros dá direito a prato, sopa e sobremesa (bebidas à parte). A outra opção é o restaurante. Mas aqui, "está-se mais à vontade", diz um jovem deputado nesta comuna de almoço.
Sobretudo, "aqui é mais barato", despacha logo Odete Santos, que vai almoçar tofu e seitan, mas também pudim.
Rebelde com disciplina
Foi educada em casa remediada e poupada. "O meu pai secava as algas e depois comíamos sopa daquilo..." Setúbal, nos anos 50, nada de que se possa lembrar Bruno Dias, o sucessor de Odete Santos, que ainda não fez 30 anos.
Odete conta que o palco lhe vem do pai recitar poemas e gostar de teatro. Depois de fazer Direito em Lisboa, ajudou-a voltar a Setúbal, "uma cidade pequena", descobrir o grupo Ribalta, onde começou no teatro amador. Aí se vingou de muito Gil Vicente que não a deixaram fazer no liceu e que ainda hoje sabe na ponta da língua, como o papel da Coscuvilheira, a Leonor Vaz. "Aos 15 anos deitei-lhe o olho. Quando veio da Censura só sobrava um verso. Tinham-no cortado todo." Também fez a Castro e foi Inês. "Deixaram-me, porque eu já estava farta de fazer de velha."
A primeira vez que pôs os pés na Assembleia foi por esta altura, aí em 1965, quando a rejeitaram como candidata à função pública por causa dos contactos com o PCP. "Em cada guarda-vento havia um daqueles contínuos de abas de grilo que me perguntava o que ia lá fazer..."
Nem resposta teve.
E falamos de animais, porque (tanto como o teatro) está na vida de Odete Santos. Três cães e uma gata e meia é porque há uma gata de fora que se habituou a vir pela janela comer, e a dona-da-casa deixa-lhe todos os dias comida. Havia outra gatinha de dentro, que morreu há pouco (chamava-se Daisy e caçava muito bem).
Um dos livros favoritos de Odete Santos (e ela fala dele como quem o leu mais do que uma vez) tem um burro. Platero e Eu, de Jimenez.
Quem a ouve (sobre animais ou as pessoas que foi defendendo ao longo da vida), não duvida de que esta não-estratega e não-líder defende aquilo em que acredita como uma loba defenderia as crias, irracional, contra toda a razão.
Numa dedicatória de um livro, Álvaro Cunhal chamou-lhe rebelde q.b, e até hoje ela considera esse q.b. como um alerta de disciplina.
Em mais de 30 anos de militância, fez tudo pelo partido, incluindo todas as figuras que não-ficam-bem ao defender o indefensável, Álvaro Cunhal Grande Português.
Depois de almoço, cigarro ao café, porque já foi de fumar dois maços e meio, e agora está num. Na véspera, como lhe acontece por vezes, deixou-se adormecer pelas 10 da noite e acordou esta madrugada às duas da manhã, nessa casa de Setúbal que já vem dos pais e onde vive só com os seus bichos. "Como tinha coisas para ler, sobre o acesso ao Direito no apoio judiciário, fiquei a ler um relatório do Tribunal de Contas até às sete e meia..." Hora a que voltou a dormir, para acordar hora e meia depois. "Não preciso de dormir muito, quatro, cinco horas..."
A caminho de Florença
Que vai fazer nesta sexta-feira do seu primeiro dia de não-deputada? "Vou ao centro de trabalho da Soeiro Pereira Gomes [sede do PCP], tenho lá trabalho..."
Em tantos anos de Parlamento, tem saudades de Almeida Santos, de Narana Coissoró, que já cá não estão, e agora, a pessoa com quem talvez fale mais é esta funcionária do PCP que agora vai a sair, responsável por facturas. "Ó Florbela...", chama Odete Santos. E diz-lhe: "Tenho que ir ao médico..." E Florbela, de olhos arregalados: "Ai, eu não acredito! Nunca em 20 anos de serviço entreguei um recibo da ADSE da Odete. Deve ser das pessoas que deu mais lucro [ao sistema de saúde]."
Que se passa? Já sem Florbela, Odete explica: "Tenho vários problemas, mas não trato deles. Mas agora tenho mesmo um problema que tenho de ver, na coluna. Aqui..." Seguem-se três horas de SIC depois RTP depois TVI, depois fotos para o JN, votações no plenário e uma entrevista para a rádio do PCP. Milhões de degraus. Centenas de voltas aos Passos Perdidos.
Deputados de vários partidos, de Manuel Maria Carrilho (PS) a Helena Lopes da Costa (PSD), despediram-se com cumprimentos e beijinhos.
Mais antigos que Odete, nem meia-dúzia e entre eles Manuel Alegre, que há uns dias lhe foi levar uma rosa, e quando o P2 o interpela diz que Odete é "uma grande deputada que conquistou o respeito de todos" e depois diz: "Vou ter mesmo pena."
E às seis da tarde, num gabinete deserto, de cortinas corridas e luz acesa, Odete Santos senta-se à sua mesa, ao lado de um caixote de livros que há-de levar para casa, a acender um cigarro antes de ter coragem para descer a última escada, que a há-de levar ao parque de estacionamento.
E fala da Irene Lisboa, de quem o pai, professor primário, lhe falava. Fala de como Agatha Christie se revelou pouco ao descobrir Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Dos Maias que está a reler "por causa daquele fim em que os dois amigos correm atrás de um transporte que já não apanham". Da piscina de Setúbal onde vai começar a ir nadar. Do bar Oktubrus de Setúbal onde tem amigas de tertúlia política.
Nunca aproveitou "bem as oportunidades" de deputada para viajar. Conheceu bem Espanha a fazer campismo em férias. E Madrid, de cada vez, era ir ao Prado, eram os Goya, e ela descreve em pormenor a Série Negra, "aquele Saturno a comer o filho, que é o tempo a devorar-se si próprio".
Se tiver tempo, porque ela diz que já não tem muito, gostava de ir a Siena, à festa do Palio. E a Florença ver um certo Botticelli.
Sabe com mais certeza o que vai fazer este fim-de-semana. "Vou limpar a minha casa."
Está sozinha. É a última a sair. Apaga as luzes.