"Climas" entra destemidamente num território caroao que conhecemos por "cinema moderno": aintimidade conjugal, a radiografia da relação de um casal. Não por acaso, os nomes que mais têm sido citados a propósito de "Climas" são nomes decineastas italianos - Antonioni ou Rossellini. O tipo de aproximação ao casal e à intimidade operado por Ceylan, entre silêncios e mistérios, ecoa de facto algum do cinema desses "avatares" italianos damodernidade, sem que haja nele qualquer matéria referencial. Embora, esse sim, houvesse umasinalização clara de referências e uma espécie de "colagem" à "Viagem a Itália" de Rossellini, écom o "Un Couple Parfait" do japonês Nobuhiro Suwa que "Climas" forma, no cinema contemporâneo, um curioso par. Uma emoção e um despojamento semelhantes, um pudor em luta às vezes violenta consigo próprio, uma espécie de romantismo desossadopela sua própria impossibilidade (mas ainda assim, tentado, quanto mais não seja para apagar tudo).
Embora o filme de Ceylan nada tenha a ver com o cinema de Eric Rohmer, por comodidade descritivadiremos que "Climas" mima a estrutura básica dos "contos morais" do cineasta francês: o trajecto de um homem de uma mulher para outra, e desta de novo para a primeira. Mas é uma progressão sempre em perda, e os "climas" do título, mais do que uma vaga metáfora poéticometereológica, são para levar à letra- dos belos planos cheios de luz estival do início (na praia, em Kas passamos para um Outono cinzentoe chuvoso (em Istambul) e daí para um Inverno branco e gelado (algures na província turca. A metereologia,em "Climas", é o coro e o comentário, uma medida datemperatura do filme tanto quanto seu indício e consequência. Mas também é uma maneira de encadeara acção, e de fazer o filme funcionar numa progressão do quente para o frio. Há aliás um "raccord" magnífico que sugere isto muito bem: depois de ficar sozinho nas férias de Verão, o protagonista vai (apropriadamente) tirar fotografias a umas ruínas, e é por essas fotografias, transformadas em slides projectados numa sala de aula, que se passa ao outonal segmento intermédio, em Istambul.
Sem qualquer espécie de perscrutação psicológica ostensiva, e com diálogos reduzidos na maior parte das vezes a tiradas triviais, "Climas" sustenta-se naindefinição com que trabalha a figura do protagonistamasculino - interpretado pelo próprio Ceylan, assim como a sua mulher, Ebru, dá corpo à mulher doprincípio e do fim. É um retrato turvo, que passatambém ele por vários estados, numa opacidade que funciona como resistência à identificação doespectador, que aliás nunca sabe bem o que pensar da personagem, às vezes desagradável, outras pura esimplesmente patética (pensamos num célebre lema strindberguiano, "os seres humanos metem dó", provável moral da história em "Climas"). Ceylan cava por aí uma distância e uma frieza que é talvez acoisa mais notável do seu filme, visto que configura um desafio ao investimento emocional que "Climas" também pratica - mas que remete a "emoção" para umadistância, para uma neutralidade, que nunca oferece ao espectador um lugar muito confortável. Exemplomáximo, a cena de sexo (que não será bem uma "cena de sexo") entre o protagonista e a segunda mulher,um longo plano único de uma voracidade impressionante. Não é uma "violação", embora possaparecer (e assim a tenhamos visto descrita). É antes uma perpesctiva próxima da de um entomologista, ouuma cena que podia ter sido tirada de um documentário sobre a vida animal. Algo de extremamente ostensivo, mas ao mesmo tempoprofundamente pudico, sem qualquer margem parasensacionalismo.
Noutro registo, já não o que se vê, mas o quedeixa de se ver, o "apagamento" , o final de "Climas" é quase sublime. Um avião que atravessa um céu coberto de flocos de neves, e a mais desarmante "dissolvência" (Bilge revela ser outrocineasta adepto de "arcaísmos") que vimos em muito tempo.Desaparece tudo, apaga-se um homem, apaga-seuma mulher, e fica a neve.