Santa Comba é a terra de Salazar e não tem vergonha
Quer queira, quer não, esta é a terra de Salazar. Pelos vistos, até quer. Os santa-combenses esperam que um museu do ditador faça um milagre turístico. Já há um mini-roteiro Salazar. Santa Comba Dão saúda-vos Kathleen Gomes (texto) e Adriano Miranda (fotos)
a O que era de Salazar está numa cave, em caixas de papelão de Sonasol e spaghetti Romero (por exemplo). Algumas estão escancaradas - terão sido abertas como amostra das curiosidades possíveis que guardam dentro. Uma embalagem de restaurador Olex, uma placa de mármore oferecida pela Hermandad de Defensores del Alcázar de Toledo "al excmo. Sr. D. Antonio de Oliveira Salazar" em Junho de 1964, uma edição brasileira de A Sexualidade de L. Gallien.
São numerosos os caixotes amontoados nesta sala ampla e sem janelas nos fundos da Casa da Cultura de Santa Comba Dão. E ainda há o que não cabe em caixas: uma cama (de solteiro) em ferro, um colchão chamuscado, malas de cartão. (A Salazar o que era de Salazar - aquelas cassetes de vídeo do Cousteau não eram dele, seguramente.)
É como visitar o sótão dos avós de alguém.
Salazar tem uma sala só para ele, mas não deixa de ser uma zona de arrumos esta cave - quando não uma zona de esquecimento. Ao sair, tranca-se a escuridão lá dentro.
Um dia, se a vontade da autarquia e da população local se cumprir, haverá um museu para exibir estas e outras coisas ligadas a Salazar e ao Estado Novo.
O projecto fez parte das promessas de campanha dos dois principais candidatos à presidência da Câmara de Santa Comba Dão nas últimas autárquicas (do PSD e do PS), o que é um indicador inequívoco de que tem peso eleitoral.
Quando se olha para o mapa do concelho, dizem os locais, nota-se que Santa Comba Dão, delimitado pelos rios Dão, Criz e Mondego, "é como uma ilha". O novo traçado do IP3, que ligará Coimbra e Viseu, vai passar-lhe ao lado - ou antes, ao largo. A ilha será ainda mais flagrante. Estão todos à espera que o futuro Museu Salazar, com este nome ou outro, opere o milagre do turismo que, actualmente, não existe. Não há um hotel na sede do concelho - o mais próximo fica a seis quilómetros e os seus lençóis têm o odor das coisas habituadas ao desuso. Os holandeses estão a descobrir aquelas terras e a fixar-se por ali, o que será que os atrai, pergunta dona Olinda, proprietária do Hotel Rural Santo Cristo, em São João de Areias, ao pequeno-almoço - tão cedo e a televisão já ligada. Só dois quartos tiveram hóspedes a noite passada.
"Quer queira quer não, Santa Comba é a terra do Salazar. Por que não tirar partido disso?", diz o presidente da câmara João Lourenço, 44 anos, eleito em 2005 pelo PSD. "No discurso da tomada de posse referi logo que Santa Comba tinha a obrigação de utilizar a "marca Salazar". Porquê? Porque trabalhei 14 anos fora e quando dizia que era de Santa Comba Dão, as pessoas diziam: "Ah, és da terra do Salazar..." Portanto, isso identificava-nos."
Pela negativa?
"Ou pela positiva, sei lá. Sabemos que há muitos saudosistas, não é? As pessoas dizem que Santa Comba é a terra do Salazar mas não conhecem, nunca cá vieram. Então, por que não acicatar-lhes essa curiosidade, proporcionando-lhes qualquer coisa que possam vir cá ver relacionada com Salazar, já agora?!"
A ambição de criar um museu relacionado com Salazar e o Estado Novo não nasceu ontem. Orlando Mendes, o anterior presidente da câmara, durante 16 anos consecutivos, diz que a ideia original foi sua, lançada ainda no primeiro mandato, em inícios da década de 90.
O projecto ganhou maior notoriedade nos últimos meses - cortesia do concurso da RTP Grandes Portugueses que a 25 de Março deu a vitória a Salazar. "Não alterámos rigorosamente nada das ideias que tínhamos e da dinâmica que tínhamos imprimido ao projecto com esta história do concurso", diz João Lourenço.
Mas que ajuda, ajuda: ainda um fim-de-semana destes, um casal de Braga foi bater à porta de Rute Basílio a perguntar onde era a casa de Salazar. "Vinham de propósito para visitar a casa." (Foram bater à porta certa - mas já lá vamos.)
A proprietária da Taberna Século XXI, no Vimieiro, nota que o movimento tem sido maior na aldeia. Foi aqui que Salazar nasceu, a meio quilómetro de Santa Comba, em 1889. "Ultimamente passa aqui muita gente a perguntar pela casa, pelo cemitério. Até excursões... algumas acho que são da câmara..."
À chuva, no cemitério
É a única vez que haverá necessidade de advertir (como os avisos ocasionais à porta dos cinemas sobre as cenas eventualmente chocantes de um filme): "Ninguém é obrigado a sair. Quem não quiser ver o cemitério fica no autocarro." Vinte e tal chapéus-de-chuva - contagem a olho, não rigorosa - saem de um autocarro de turismo sénior do Inatel, vindos de Évora, Grândola, Sesimbra, Setúbal.
Para alguns, é a primeira vez, outros já estiveram aqui antes, no cemitério do Vimieiro, onde está sepultado Salazar. "Quando eu cá vim não era assim", comenta uma mulher do grupo. Há apenas cinco dias, também não: havia flores dispersas a murchar sobre a campa rasa, uma estrelícia, dois lírios roxos e pouco mais, como que trazidos à vez. Hoje há uma jarra imponente com cravos amarelos, viçosos, e cinco lamparinas de azeite acesas. Há alguém a olhar por ele.
Na parede em frente, há muita rima de encher o olho. Num folclore de mármores, admiradores de Salazar - um certo Armando Cardoso é o mais recorrente - imortalizaram aqui as suas quadras de versejador populista. "Um dia será procurado em rotas/ Este lugar para peregrinação/ Por gentes locais e remotas/ Na esperança da sua ressuscitação."
Telemóvel ou câmara em riste, um trio de idosos fotografa o "memorial" - talvez porque só visto. Uma mulher aponta num pedaço de papel uma das quadras, devagarinho: "O homem mais poderoso de Portugal...", começa, e depois pede ajuda.
"Deus o conserve aqui. Que ele não abale", ri-se outra mulher. Não há pudor em gracejar, como não há pudor na demagogia. "Só um Salazar já não fazia nada disto. Era preciso mais", atira um homem à saída.
Mini-roteiro Salazar
Todas as segundas-feiras, desde 12 de Março, Rute e Susana, funcionárias municipais na área do turismo, conduzem grupos de pensionistas por Santa Comba Dão, segundo um roteiro que elas próprias prepararam. Porque o tempo está de chuva, a visita ao mini-zoo instalado nos bombeiros voluntários é cancelada hoje, mas quase todo o programa é cumprido. Nas próximas duas horas, cinco das paragens obrigatórias têm uma relação directa ou indirecta com Salazar: o painel de azulejos da igreja matriz que representa a casa onde ele nasceu e que foi reconstruído há um ano; a fonte frente ao tribunal onde antes existia uma estátua do chefe do Estado Novo, a casa, o cemitério, a Escola-Cantina Salazar.
Ninguém lhes terá exigido neutralidade, desde cedo as guias fazem do passeio tribuna para as pretensões locais. A população defende a criação do museu, dizem, e, por que não, a restituição da estátua de Salazar, dinamitada em 1978. "Quem é de cá é que deve decidir."
Uns dias antes, num gabinete da Casa da Cultura - à espera que o novo posto de turismo abra - Rute Basílio, 25 anos, faces rosadas, olhos grandes, recorda a manifestação que no primeiro sábado de Março opôs centenas de habitantes locais a um grupo de opositores à criação do museu. "Indignou-nos muito virem para cá os manifestantes da URAP [União dos Resistentes Antifascistas Portugueses, que contesta o projecto do museu, contra o qual lançou uma petição]. Como é que pessoas de fora vêm para cá fazer juízos de valor sobre o que é feito aqui?"
"Era bom que fizessem isso", diz a dona da Taberna Século XXI, no Vimieiro, a propósito do museu. "As pessoas chegam aqui e não têm nada para ver." O que têm para ver desilude-as: uma casa na curva com o telhado esventrado, três vigas a sustentá-la, a ver se não cai. É aqui que a Câmara de Santa Comba Dão tenciona criar o museu.
"As pessoas ficam um bocadinho aborrecidas porque a casa está em completa ruína e não se pode lá entrar", diz Rute. "Estão sempre à espera de mais do que aquilo que encontram, parece que não acreditam quando lhes dizemos que é a casa de Salazar." Também aqui a devoção deixou uma placa de mármore: "Aqui nasceu em 28-4-1889 Dr. Oliveira Salazar, um senhor que governou e nada roubou."
Esta casa discreta, de caixilhos verdes e bancos de granito, à beira da estrada, já era a propriedade dos pais, camponeses. Salazar ampliou-a com a aquisição de terrenos onde cultivou vinha. Para alguns, a casa será prova da humildade de um estadista que não lucrou pessoalmente com o poder. Vista de frente, pelo menos. "É uma casinha modesta salvo seja", ressalva Orlando Mendes. "Se vir do outro lado..."
Do outro lado, descontando o IP3 que a rasga ao meio e um abandono envolto em silvas, confirma-se: a quinta tem costas largas.
Dona Rosalinda, 77 anos e uma viuvez recente que a cobre de preto, trabalhou ali ainda moça durante a vindima - Salazar voltava sempre à sua terra nessa altura do ano. A aldeia, garante, "já era assim". "O Vimieiro sempre foi pobre", sentencia. Porta sim, porta não, casas à venda. O Vimieiro é cinzento, granítico, tem duas ruas e pronto. Em tempos teve uma indústria dinâmica, de fazer inveja a Coimbra, garantem os habitantes. "Hoje não temos nada", lamenta o senhor José, ex-carteiro "nas horas de almoço".
Uma taberna do século XXI - é onde ele se encontra agora e nesta hora de almoço - é como todas as tabernas: copos de três ao balcão, moscas a esvoaçar no vazio. Esta aqui tem fotografias de Rivieras nas paredes e uma pequena mercearia do outro lado. A proprietária de 42 anos não se quer identificar, por reserva ou simplesmente porque esta terra não é a sua. Veio para cá há 17 anos, um forasteiro fez-lhe notar que o seu estabelecimento estava na vanguarda local: era o primeiro do género no Vimieiro com máquina de café; por brincadeira declarou que aquela era "uma taberna do século XXI". Daí o nome.
Se alguma vez os santa-combenses sentiram qualquer estigma por serem da "terra de Salazar", ele não é visível. Há um graffito desbotado num largo de Santa Comba: "Odeiam-nos porque querem ser iguais a nós."
O Voz do Dão, jornal local fundado em 1985, fica ao cimo de uma escada íngreme e rangente. É uma empresa familiar: António Sousa Guedes é o director, a mulher, Maria de Fátima, é chefe de redacção. (A redacção, já agora, são eles os dois.) "Onde há notícia, estamos lá", lê-se no placard ao lado da sua secretária.
Sousa Guedes exibe o bilhete de identidade como se fizesse uma declaração de interesses. "Tenho quatro vezes Santa Comba Dão no B.I." Confere, confere, confere, confere. "Isto dá-me legitimidade para falar como santa-combense verdadeiro. É um orgulho e uma honra ter nascido em Santa Comba Dão."
Orlando Mendes, 64 anos, ex-professor de Matemática, já reformado, e ex-autarca socialista, veio para cá aos dois anos - não, ele não tem Santa Comba Dão impresso no B.I. quatro vezes e isso não é um pormenor. "Nas campanhas eleitorais, a direita fazia sempre passar a mensagem de que eu não era de cá." A que se deve este "bairrismo exacerbado"?
É tentador especular que na condição de "terra de Salazar", Santa Comba Dão ergueu defesas contra previsíveis preconceitos, ganhou calo, fez-se forte. Não há forma de o corroborar e não se pede a um paciente para se psicanalisar a si próprio. Salazar era daqui e isso é um argumento.
Não para Sousa Guedes, que tem "uma posição completamente antagónica" ao comum santa-combense: é contra o museu, já o fez saber ao presidente da câmara João Lourenço, de quem se diz amigo. "Não somos nós que devemos alguma coisa ao dr. Oliveira Salazar... Eu assisti ao enterro dele, tinha 13 anos." Saca do B.I. de novo, para mostrar a data de nascimento: 30/07/1957. "Vi aquele pirata entrar para o buraco..."
A uma mesa de café, Orlando Mendes diz esta frase: "A sua terra tem a mesma responsabilidade que Santa Comba Dão tem em relação aos 42 anos que Salazar esteve no poder." É verdade: Salazar é uma criação nacional, não local.
Na manifestação de há um mês, "os grandes arruaceiros não foram a URAP nem os santa-combenses", garante Sousa Guedes. "Não eram pessoas daqui." Diz ter fotografado toda a gente, 870 no total. "Os problemas foram causados por gente facciosa. Até ampliei as fotografias para ver os olhos das pessoas... Olhos de ódio..."
O museu não-museu
O Museu Salazar já não se vai chamar Museu Salazar. "Vamos retirar a palavra "museu". Porque quando se fala em museu fala-se numa homenagem a alguém", diz João Lourenço. "Como não pretendemos fazer nenhuma homenagem a Salazar, nem ele precisa, provavelmente vamos chamar a este projecto "Casa Salazar", que incluirá um centro de estudos e um parque temático do Estado Novo, etc." O autarca garante uma abordagem "objectiva" que não passará ao lado do carácter repressivo da ditadura salazarista, por exemplo.
David Oliveira, 83 anos, autodenominado "artista-escultor autodidacta santa-combense", está debruçado no balcão do Café Central, a ler o jornal. É fácil reconhecê-lo porque ele cobriu duas montras junto ao Núcleo Sportinguista do Concelho de Santa Comba Dão com fotografias suas: jogador nos Pinguins do Dão, clube da terra, marujo e marialva a bordo do contratorpedeiro Dão, ou mais recentemente com Eusébio junto ao busto que dele fez.
Medalhista, pintor e escultor naïf, fotógrafo, projeccionista de cinema ambulante, não tem mais do que a instrução primária embora Salazar o quisesse mandar estudar na Escola de Belas-Artes. Até lhe chegar aos ouvidos que o rapaz, afilhado da sua prima Olívia, participara de uma reunião de oposicionistas ao regime em Santa Comba. Sem ressentimento: "Olhe, não necessitei disso, de ir para Belas-Artes. Os das Belas-Artes é que vieram aqui numa camioneta para eu lhes mostrar como se faz uma medalha." Continua a trabalhar, a fazer as suas peças, mais ou menos toscas. "Estou de volta do Salazar", diz. O busto do ditador, em argila, ainda não está acabado. Não é a primeira vez que esculpe Salazar, como atesta uma visita à exposição permanente da sua obra numa sala da Casa da Cultura. Um busto, uma maqueta da estátua de Salazar que alguém fez explodir, duas medalhas... (e também bustos e medalhas de Sá Carneiro, Ramalho Eanes, Marcelo Caetano, Padre Cruz, Amália...).
A última folha do livro de visitas da exposição tem uma sequência de assinaturas, todas feitas a 26 de Março, um dia depois de Salazar ter ganho a votação do concurso Grandes Portugueses.
Há dois comentários no final da lista de assinaturas. "Parabéns, gostei muito. Só falta a cidade ter a estátua de Salazar, pois é uma figura ilustre desta terra. António C. Pinto." "A minha grande homenagem ao ilustre Dr. Oliveira Salazar. O maior Homem de Portugal. Mª A. Camarate de Campos."
Em 1979, David Oliveira obteve o primeiro lugar num concurso para uma nova estátua de Salazar que substituísse a que fora destruída. "Agora estou com a ideia de fazer a Ceia de Cristo. Sabe a pena que tenho? Não haver a imagem de Deus."