Marlene Dietrich e Ernest Hemingway, "vítimas de paixão dessincronizada"
Nunca foram amantes, mas amaram-se durante 30 anos. E eram grandes amigos. Trinta cartas de Hemingway para a Marlene Dietrich foram agora tornadas públicas
a Quando estreou, em 1934, A Imperatriz Vermelha, o filme que Marlene Dietrich acabara de fazer com Joseph von Sternberg sobre a vida de Catarina a Grande, foi um fracasso. Era a época da Grande Depressão, e ninguém parecia particularmente interessado na vida da imperatriz russa. Marlene apanhou o barco de regresso a Paris. Foi aí que conheceu Ernest Hemingway. A amizade entre os dois começou nessa viagem no S.S. Île de France, atravessou os tempos conturbados da guerra, quando Marlene cantava para as tropas aliadas nas linhas da frente, e só terminou quando, em 1961, Hemingway se suicidou com um tiro na cabeça, a poucas semanas de fazer 62 anos. Durante mais de uma década, de vários pontos do mundo, escreveram um ao outro - trinta dessas cartas escritas por Hemingway entre 1949 e 1959, e doadas em 2003 à Biblioteca Presidencial John F. Kennedy pela filha de Marlene, Maria Riva, foram agora tornadas públicas.
São cartas de amor de duas pessoas que, disse um dia o próprio Hemingway ao seu amigo, e escritor, A. E. Hotchener, foram "vítimas de paixão dessincronizada". "Estamos apaixonados desde que nos encontrámos em 1934, mas nunca fomos para a cama. É espantoso, mas é verdade".
"Somos os dois solitários e devemos ter consciência disso", escreve Hemingway à amiga a quem chamava, carinhosamente, "kraut" (bochezinha) - Marlene era ferozmente anti-nazi. E, noutra carta, também de 1950, enviada de Cuba: "O que é que queres realmente fazer para ganhar a vida? Partir o coração de toda a gente por um tostão? Podes sempre partir o meu por meio tostão e eu levo o meio tostão".
"[As cartas] confirmaram o que sabíamos na família... eles eram grandes amigos. Eram compinchas", disse Peter Riva, neto de Marlene, citado pela ABC News. Às vezes não parece ser apenas isso. Há cartas que podiam ser de dois amantes. Como uma que Marlene lhe escreve em Agosto de 1952 (as cartas de Marlene faziam já parte da colecção da biblioteca): "Quero pôr os meus braços à tua volta e o meu coração. Quero beijar-te para sempre e mais um dia pela beleza que há em ti... Não posso amar-te mais do que amo, nem mais profunda ou longamente...".
Outras que parecem, de facto, de dois amigos. Como aquela, de Fevereiro de 1950, escrita em Veneza por Hemingway. "Mary [a quarta mulher do escritor] está óptima e manda o seu amor. Estou empenhado num programa de me manter com Miss Mary, e mais ninguém. É um programa fácil de cumprir com um sistema simples de fazer amor toda a noite e assim ficar automaticamente inutilizado para o consumo por qualquer outra mulher". Ou uma outra, esta de Cuba (Novembro de 51, enquanto escrevia O Velho e o Mar): "Está muito calor para fazer amor, se é que podes imaginar isso, excepto debaixo de água, e nunca fui muito bom nisso".
Há também momentos em que Marlene confessa os ciúmes que sente, não de Mary, mas das muitas outras amigas que o escritor cultivou durante toda a vida, e às quais gostava de chamar "filhas" - para elas, ele era, claro, o Papá. Num dos casos, o alvo dos ciúmes da actriz alemã é a sueca Ingrid Bergman. Ele responde: "Sente-te furiosa o que quiseres. Mas pára em algum momento, filha, porque só há uma como tu no mundo, e nunca haverá outra, e eu sinto-me muito só neste mundo quando ficas furiosa comigo".
Talvez, se não fosse a tal falta de sincronia, esta tivesse sido uma história de amor diferente. Marlene era casada - e foi, toda a vida - com Rudolf Sieber, um assistente de realização que mais tarde se tornou director dos estúdios Paramount em França. Mas isso nunca a impediu de ter uma série de amantes, de ambos os sexos, dos actores Jean Gabin e Yul Brynner, a Frank Sinatra, ao jornalista Edward R. Murrow, ou à actriz Ona Munson (tal como não impediu Sieber de viver com a sua amante Tamara Matul).
Hemingway, numa das cartas escritas de Cuba, deixa escapar uma certa amargura por esse permanente desencontro, e dá a entender que, pelo menos num momento, não foi por vontade dele: "Marlene, amo-te muito, como tu muito bem sabes. Foste tu que decidiste, naquela vez no barco, que nós tínhamos deixado quem quer que fosse com que estávamos envolvidos, cedo demais. Não fui eu". E numa outra (Janeiro de 1950) lamenta: "Apaixonei-me a sério por ti e tu estavas sempre apaixonada por algum idiota".
Entre a correspondência agora tornada pública, estão, para além das cartas, quatro telegramas e um postal de Natal. Num dos telegramas, de 1955, o autor de Por Quem os Sinos Dobram agradece à amiga um artigo sobre ele que ela publicara no International Herald Tribune, intitulado "O homem mais interessante que conheço". "Comovido e honrado pelo artigo. Tentei telefonar. Longa carta a caminho. Amo-te. Ernest". De Cuba para Park Avenue, Nova Iorque.
O postal de Natal é, segundo a ABC News, o último que Hemingway escreve (dos que estão na posse da biblioteca), em 1959, a partir do Idaho. Deseja-lhe "boa sorte e velhos e novos amores". Em Abril de 1961 (três meses antes do suicídio do escritor), a actriz escreve uma nota, à mão, dirigida à clínica onde Hemingway estava a tratar uma depressão profunda e graves problemas de alcoolismo. "Papá, o que é? Seja o que for - não gosto". Não se conhece resposta.