Quando o Papa Paulo VI surpreendeu o mundo
Há 40 anos, o mundo vivia optimista. O Papa Paulo VI surpreendeu toda a gente com uma encíclica sobre o desenvolvimento dos povos. "Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência", dizia. Passaram mesmo quatro décadas? António Marujo
a Em 1967, um documento do Papa Paulo VI surpreendeu meio mundo: nesse ano, o dia 26 de Março, fez segunda-feira passada 40 anos, era Domingo de Páscoa. Foi a data escolhida para divulgar uma encíclica que falava do desenvolvimento, da industrialização, da equidade nas relações comerciais entre povos, da importância de uma autoridade mundial eficaz e da necessidade de estabelecer um fundo de ajuda aos países mais pobres. E que, relida 40 anos depois, mantém uma actualidade premente em muitos dos seus enunciados. O tema e o tempo escolhidos não eram esperados. A encíclica Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos) parecia mais um texto saído de alguma instituição económica. O Ocidente vivia um tempo de euforia: o crescimento económico antecipava a abundância, o processo de descolonização entrava na recta final (só Portugal mantinha colónias). Mas havia já sinais prenunciadores da crise: a difícil luta pelos direitos cívicos dos negros norte-americanos, a agonia da guerra do Vietname. A revolta estudantil francesa chegaria em Maio de 1968...
Comungando de algum optimismo, a encíclica de Paulo VI não deixava de alertar: "Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência", escrevia o Papa Montini no terceiro parágrafo. O documento saía apenas 15 meses depois de terminado o Concílio Vaticano II, que iniciara a reforma da Igreja e retivera, entre 1962 e 1965, a atenção de muitos.
A surpresa será maior se se pensar, recorda Peter Stilwell, que nessa altura o papado - estamos antes de João Paulo II e da massificação televisiva - não atraía as atenções que depois conquistaria. Stilwell, director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, coordenou a edição de vários documentos de doutrina social católica (Caminhos da Justiça e da Paz, ed. Rei dos Livros), entre os quais a Populorum Progressio.
Já se começava a falar de neocolonialismo, lembra este especialista. Os países que tinham conquistado a independência após a II Guerra Mundial continuavam dependentes. Havia excepções: Leopold Senghor no Senegal, Julius Nyerere na Tanzânia. Mas a maioria das lideranças africanas mais não fazia que "reproduzir as estruturas das anteriores administrações coloniais", diz Stilwell.
Tal realidade era referida por Paulo VI: "Os povos que ainda há pouco tempo conseguiram a independência nacional sentem a necessidade de acrescentar a esta liberdade política um crescimento autónomo e digno, tanto social como económico."
"Liberalismo esmaga"
É neste contexto que, qual pedrada no charco, surge a encíclica. "O desenvolvimento é o novo nome da paz", escrevia então o Papa, num enunciado que ficaria célebre. E o desenvolvimento "não se reduz ao simples crescimento", acrescentava. A novidade "foi que o desenvolvimento foi compreendido como um processo universal", disse quarta-feira passada na Universidade Católica, em Lisboa, um dos peritos que foram convidados por Paulo VI a trabalhar na redacção da encíclica.
Jean-Yves Calvez, de 79 anos, padre jesuíta e teólogo, é um dos mais importantes especialistas no pensamento social católico, com uma larga lista de títulos publicados em campos como a filosofia política ou o marxismo. Na época em que participou na redacção da encíclica, Calvez admite que "toda a gente" imaginava que era uma questão de "curto prazo" acabar com a miséria.
Em entrevista ao PÚBLICO, o padre Calvez reafirma: "Toda a gente falhou: economistas, políticos, todos os que se implicaram na questão do desenvolvimento nos anos 50-60. Imaginavam que, com uma política monetarista e meios financeiros, se poderia elevar o nível de toda a população que tínhamos deixado ao abandono no tempo colonial." Mesmo assim, o teólogo tem uma perspectiva optimista: "Ao mesmo tempo, tivemos sucessos, não se pode dizer que fracassámos em toda a linha. Mas há problemas difíceis ."
Na conferência da Universidade Católica, Calvez situou: a "questão maior" era a da ""disparidade", da flagrante desigualdade quanto ao desenvolvimento". Mas não bastava recorrer aos mecanismos económicos para resolver os problemas. O Papa, diz, tinha consciência da importância da cultura. "Paulo VI tinha um sentido muito agudo dessa necessidade. Foi o que a encíclica trouxe de novo. Não trouxe grandes invenções sobre modos de financiamento ou industrialização, mas sim sobre os aspectos culturais e sociológicos."
Tal visão traduzia-se em alguns enunciados: um desenvolvimento integral e solidário; ambivalência do crescimento, já que "possuir mais não é o fim último"; o destino universal dos bens acima do direito à propriedade e do comércio livre; o risco de "esmagar" os países pobres com o peso da dívida; o "escândalo intolerável" do esbanjamento; a necessidade de "construir uma ordem jurídica internacionalmente reconhecida".
Pelo meio, Paulo VI anunciava a criação de uma comissão para favorecer as ideias da encíclica - "Justiça e Paz é o seu nome e o seu programa". E apelava à criação de um "fundo mundial, sustentado por uma parte da verba das despesas militares, para vir em auxílio dos mais deserdados".
Quarenta anos depois, Calvez verifica: "A repartição é mais desigual que nunca". E se "o liberalismo é eficaz de muitas maneiras, traz também o esmagamento e a exclusão de muitos". Mas a encíclica tem um "rico conjunto de princípios".
Um sentimento de urgência atravessava o documento: "Temos de nos apressar: há muitos homens a sofrer e cresce a distância que separa o progresso de uns da estagnação e até da regressão de outros." Esta frase tem mesmo 40 anos?