"É o ADN que determina o futuro e não um potencial Deus"
James Watson protagonizou um dos grandes feitos científicos de sempre: a descoberta da estrutura do ADN. Com 78 anos, não acredita, porém, que os nossos genes possam ser mudados para melhorar a saúde. Estará certo? Teresa Firmino (texto) e Enric Vives-Rubio (fotos)
a Pena os jornais em papel não virem com sons. Íamos poder ouvir os risos de James Watson, que fazem lembrar um desenho animado, o cão Muttley, dos malucos das máquinas voadoras. Espalharam-se ao longo de uma conversa franca e variada, que passou pelo cancro, as doenças mentais (ele tem um filho doente mental), a velha disputa entre o que é inato e adquirido, os transgénicos ou a clonagem. Deus e o lado descrente do cientista não ficaram de fora, nem as suas convicções políticas. De Bush, pensa o pior. Cristiano Ronaldo e os portugueses não escaparam às suas observações. PÚBLICO - Há mais de 50 anos, descobriu a estrutura da molécula de ADN. Em 2000, obteve-se a primeira sequência completa do genoma humano. Como antevê o uso de informação genética para melhorar a saúde?
JAMES WATSON - Temos doenças porque as instruções genéticas não são perfeitas. Por exemplo, se descobrirmos por que razão umas pessoas têm diabetes e outras não, poderemos procurar melhor uma cura.
Apesar de tanta informação, os resultados práticos parecem poucos: continuamos a morrer de cancro e de outras doenças genéticas.
Podemos olhar para a garrafa meia vazia ou meia cheia. Os cientistas já percorreram 80 por cento do caminho na compreensão do cancro. Os próximos dez anos serão cruciais na aplicação dos conhecimentos que temos para curá-lo. Agora, o único desafio é curá-lo. Pode ser uma batalha que nunca ganhemos, mas temos boas hipóteses, se o fizermos a sério e explorarmos o que já sabemos.
Sequenciar o ADN de uma pessoa ainda custa um milhão de dólares.
Mas o preço vai baixar bastante depressa. Sequenciar o genoma da primeira pessoa custou quase 3000 milhões de dólares. Aprendemos a ser mais eficientes e, em 2003, já custava 300 milhões. Agora há várias empresas a fazê-lo. Ficaria muito feliz se baixasse até 20 mil dólares, porque teríamos informação genética sobre um número grande de doenças. Poderíamos olhar para pessoas com doenças mentais e procurar padrões de diferenças genéticas em relação a pessoas sem doenças depressivas ou bipolares. Dentro de dez a 20 anos, através do ADN, poderemos diagnosticar as doenças mentais.
Também resolveremos o clássico problema do inato versus adquirido. Os portugueses falam mais alto e são mais expressivos do que os suecos. Esta personalidade dos portugueses está nos genes ou é cultural? É do tempo, do sol, ou está nos genes? Será que alguém teve sucesso na carreira por ter tido uma boa educação e pais bons ou porque possui bons genes? Não sabemos. Desde sempre que as pessoas falam do facto de sermos diferentes. Ao olharmos para gémeos idênticos criados separadamente, começámos a ter uma ideia da componente genética de um dado traço. Agora podemos descobrir se as causas são genéticas. Daqui a dez anos, seremos capazes de dar uma resposta.
Acha que em breve será possível ter um perfil genético de cada um de nós?
Talvez daqui a 15 anos haja um perfil genético para metade dos portugueses. Depende de quão depressa as coisas evoluírem.
Tem dito que as pessoas com sucesso deveriam ser pagas para ter filhos. Por que diz isto?
Neste momento, as mulheres com sucesso não estão a ter filhos. Se há uma componente genética da inteligência ou da ambição, então a sociedade terá menos pessoas talentosas. As taxas de natalidade nos países com sucesso estão a cair. O meu colega Francis Crick, que não era politicamente correcto, achava que devia pagar-se aos pobres para não terem filhos.
Se se teve má sorte genética - por exemplo, esquizofrenia -, é-se pouco inteligente. Se se é mais inteligente, tem-se mais sucesso, porque a inteligência ajuda. Se uma pessoa não é capaz de ler ou escrever, é pouco provável que tenha sucesso, a não ser que seja um grande atleta. Quem é o maior futebolista português agora? [dizem-lhe que é Cristiano Ronaldo]. Que joga agora no Manchester, não é? Será que Ronaldo é inteligente? Não sei.
Mas o que acha de Ronaldo?
Acho que ele não é estúpido. Sabe certamente onde deve estar. Algumas pessoas muito boas a matemática são socialmente desajustadas. Se dedicamos grande parte do cérebro à matemática, não temos o suficiente para a parte social. As algumas destas pessoas chamam idiotas-sábios: são capazes de cálculos extraordinários, mas são idiotas sociais, que nem sequer sabem tomar conta de si.
Toda a gente está fascinada com o cérebro, é a grande fronteira. Não sabemos como a informação é armazenada no cérebro, que comportamentos são herdados ou como é que os genes levam à organização do cérebro. O século XX foi a da junção entre a química e a biologia. O século XXI será o da junção entre a psicologia e a biologia.
Poderemos melhorar o genoma humano, através de engenharia genética?
Possivelmente, não. Depois de nascermos, não podemos mudar o nosso ADN. Poderemos usar o diagnóstico genético antes da implantação dos embriões: na fertilização in vitro, tira-se uma célula do embrião e vê-se se pode ter autismo ou outra doença.
Mas há experiências que já tentam reparar um gene que cause doença com um gene saudável.
Mas não têm tido muito sucesso. Sempre achei muito difícil. Não sou contra. Numa doença cerebral, acho que não seremos capazes de mudar células suficientes no cérebro. Nas doenças do sangue, pode ser possível. Em alguém que nasceu com uma doença como a fibrose quística ou a coreia de Huntington, podemos mudar a química subjacente, mas não o gene.
Então, o ADN é intocável?
Depois de se nascer, é bastante intocável. Mas, como se sabe, as previsões estão muitas vezes erradas.
A molécula do ADN é como um deus?
No sentido em que controla e determina o futuro, sim. Mas é o ADN que determina o futuro e não um potencial Deus. Essas são as minhas crenças. Não acredito num Deus pessoal que interfere com as nossas vidas. Não acredito que a oração ajude.
E a ciência ajuda?
Sim. Costumo dizer: se não fizermos de Deus, quem o fará? Para que uma criança de doente fique saudável, não acho que a oração ajude. Mas a medicina baseada em ciência às vezes ajuda.
Os receios de usar a genética para discriminação parecem-lhe reais?
Já discriminamos as pessoas. Quem tem bom aspecto, encontra emprego mais facilmente. Isto é discriminação. Se compreendermos melhor por que algumas pessoas são socialmente desajustadas, poderemos ser mais compreensivos e simpáticos. Talvez até haja menos discriminação, se soubermos mais sobre os genes. Não vamos olhar para os genes de alguém e decidir para que escola deve ir. Fará os testes e, se forem bons, irá para escolas boas. Compreenderemos por que algumas pessoas se saem melhor do que outras.
Afinal, parece mais inclinado para a importância da genética face ao adquirido.
Através dos gémeos idênticos, sabemos que a genética influencia o QI. Não sabemos é até que ponto.
Para si, qual é o papel da ciência hoje no mundo? Precisamos de mais cientistas. O sucesso dos Estados Unidos não se deve só ao petróleo. Baseia-se no conhecimento.
Que diferenças vê entre os EUA e a Europa?
Não entendo muito bem a Europa, por exemplo por que tem tanto medo das plantas geneticamente modificadas. Acho que é totalmente irracional. Na Alemanha, vemos que a genética tem sido associada a Hitler. Como Hitler é mau, a genética é má e isso tem sido explorado pelas pessoas de esquerda. Não há provas de que os transgénicos sejam uma bomba relógio. Não se podem fazer regulamentações até algo de mau acontecer, porque é imprevisível.
Estive na China, onde a maioria do algodão vai ser produzido com plantas geneticamente modificadas. Vão usar menos pesticidas, o que é bom. Os transgénicos parecem ser mais eficientes e menos perigosos para ambiente.
A oposição aos transgénicos vem sobretudo das pessoas da esquerda. Antes era-se pró-comunista, agora não se pode, por isso é-se anti-ADN. A esquerda não gosta da genética, porque mostra que nem todas as falhas do seres humanos se devem ao capitalismo. Pode ser apenas má sorte com os genes que se tem. Muitos dos meus amigos são de esquerda e detestam a ideia de que os genes afectam o comportamento humano. Para estas pessoas, a política é mais importante do que a ciência. Já se viu que o comunismo não funciona economicamente, por isso no seu lugar temos um ambientalismo social, que é uma maneira de lutar contra grandes empresas. Cresci a ser de esquerda, mas agora não gosto nem da esquerda nem da direita.
Qual acha que deve ser a relação entre a ciência e a política?
O Presidente dos EUA não tem respeito nenhum pelos cientistas. Agora, finalmente, aceita a existência do aquecimento global, mas ele... oh, é horrível, horrível. Costumo dizer que ele é um rico lixo.
Desculpe!?
Ele é lixo! L-I-X-O. Não tem nenhuma ligação à realidade. É assustador quando não se age de forma lógica. Conheci o vosso primeiro-ministro, que é impressionante. É inteligente, fala de forma sensata. Conheci o vosso Presidente, que também é inteligente. Esperamos que os líderes de um país usem o conhecimento. Queremos substituir a superstição pela razão e não aceitar qualquer coisa como se fosse uma revelação.
O que acha da clonagem e investigação em células estaminais?
Não sou religioso, não acredito na alma. A única coisa que pergunto é se ajudará a sociedade. Se ajudar a curar algumas das doenças graves, sou a favor. Não vejo aqui ninguém a ser prejudicado. Dizer que uma célula contém a alma é tudo superstição. Sou prático: será a clonagem boa para os portugueses? Talvez. Será má? Não. Refiro-me à clonagem de células, não de humanos.
Por que aceitou o convite da Fundação Champalimaud para dirigir um conselho científico?
Porque é uma grande oportunidade para fazer algo de muito bom e porque queria vir a Portugal. Quando vim para a Europa há mais de 50 anos, nunca quis vir a Portugal, porque era de esquerda e em Portugal estava Salazar. No regime de Salazar, não havia ciência. Agora há ciência e eu quis vir cá.
O ADN tornou-se popular por ser uma molécula importante ou também por ser bonita?
Porque é poderosa, é o nosso livro de instruções.
Como foi ficar famoso aos 25 anos?
Tive muita sorte. Foi mais fácil arranjar um bom emprego.
Quando perceberam como era a estrutura do ADN, pensou no Nobel?
Era impossível não pensar. A estrutura sugeria como é que o ADN era copiado. Sabíamos que era muito importante.