O italiano que queria ser rei de Portugal e acabou na prisão
Rosario Poidimani tinha até um trono no "consulado" que criara na cidade italiana de Vicenza. Era a partir daí que vendia títulos de nobreza e passaportes diplomáticos, em nome da "Real Casa de Portugal". Foi preso na semana passada por burla e extorsão. Por Alexandra Prado Coelho
a Diz-se "sua alteza real príncipe de Bragança", pretendente ao trono de Portugal, e tem entre os seus projectos a criação de um mini-Estado, possivelmente numa ilha no Mediterrâneo, onde instalaria o "Principado de Bragança". Ou melhor, tinha. D. Rosario Poidimani está, desde há uma semana, detido na cidade italiana de Vicenza por suspeitas de burla, falsificação de documentos, extorsão e associação criminosa. Juntamente com ele foram detidos sete dos seus colaboradores, entre os quais o seu "ministro dos Negócios Estrangeiros", Roberto Cavallaro. Foi em Vicenza que Poidimani, nascido em 1941 na Sicília, instalou a sua "Real Casa de Portugal", que funcionava como gabinete diplomático, emitindo e vendendo documentos falsos - a polícia italiana apreendeu na operação da semana passada 712 falsos passaportes diplomáticos, 600 bilhetes de identidade, 125 matrículas e ainda cinco livre-trânsitos das Nações Unidas.
Aí, o pretenso "rei de Portugal" construiu cuidadosamente a sua ficção. Tinha uma sala do trono, com cadeiras em vermelho escuro e dourado perfiladas de ambos os lados, para eventuais audiências. E, aparentemente, não faltavam visitantes. João Sarmento, jornalista português que o entrevistou há três anos, visitou-o uma primeira vez em Vicenza, e uma segunda na Sicília, onde assistiu a uma cerimónia muito concorrida, na qual Poidimani "distribuía uma série de comendas" a pessoas de vários pontos do mundo, desde a cônsul do Gana em Roma, até "muita gente de países do Leste", o que não é de estranhar num homem que "tinha muito boas relações com a Igreja Ortodoxa".
Na casa de Vicenza - cujo interior se pode conhecer no site da "Real Casa de Portugal", o nome que o autodenominado pretendente ao trono adoptou, com o cuidado de se distinguir da Casa Real Portuguesa - estão o que Poidimori diz serem objectos pertencentes a D. Manuel II de Portugal, um colar do Infante D. Henrique e molduras com fotografias dos reis e rainhas de Portugal. Há ainda um museu, com horário de abertura ao público, com "arte antiga, arte moderna, fotografia, escultura" e, à mistura, uma colecção de objectos de tortura antigos.
"Havia imenso merchandising, desde canetas e t-shirts", diz João Sarmento, mas parecia existir o cuidado de não usar o brasão de D. Duarte de Bragança, nem as armas da Casa de Bragança. Apesar disso, Poidimani falava abertamente no "lobby dos amigos de D. Duarte", a quem acusa, no seu site, de querer "usurpar" o trono de Portugal. O italiano também não escondia as intenções de criar o seu principado e de declarar a independência. "Chegou a estar em negociações com o Governo da Macedónia para comprar uma ilhazinha onde se instalaria", conta o jornalista português, que recorda o aparato com que foi recebido em Vicenza, onde o foram buscar "com um Mercedes preto de bandeira diplomática à frente".
Mas em que momento a vida deste siciliano se cruza, pela primeira vez, com Portugal? No dia em que Poidimani conhece Maria Pia, a mulher que dizia ser filha ilegítima do rei D. Carlos (e de uma suposta amante deste, Maria Amélia Laredó e Murca) e que durante várias décadas se apresentou como a "legítima pretendente" ao trono de Portugal. O que Maria Pia sempre defendeu foi que D. Duarte não seria o pretendente legítimo por descender da linha de D. Miguel - e, de acordo com a convenção de Evoramonte, de 1834, os miguelistas, derrotados na guerra civil, perderam todos os direitos, incluindo o de reclamar o trono. Ela, pelo contrário, como suposta filha de D. Carlos e irmã do último rei, D. Manuel II (embora só se tivesse apresentado publicamente como tal depois da morte deste), seria da "linha legítima". A dificuldade era provar a paternidade de D. Carlos, e para isso Maria Pia apresentava apenas um certificado de baptismo de um igreja cujos registos tinham sido destruídos durante a guerra civil espanhola e que foram mais tarde reconstituídos pelos padres, com base em testemunhos. A pretendente - que no tempo da ditadura apoiou a candidatura de Humberto Delgado e que chegou a ter Mário Soares como advogado de defesa - alegava ainda que existiria uma carta assinada por D. Carlos em que ele a reconhecia como filha.
No final de uma vida aventurosa, Maria Pia, que, aparentemente, não tinha o apoio das filhas, decidiu "abdicar" a favor do empresário siciliano Rosario Poidimani, que, segundo ela, era descendente de um ramo real de raiz francesa, sendo, dessa forma, seu parente afastado.
Numa página da Net sobre Hilda Toledano - o nome que Maria Pia adoptou para viver em Espanha, e para publicar vários livros - está reproduzido aquilo a que chamou o "Acto soberano Nº 5": "Tendo alcançado uma idade avançada, com total controlo das minhas capacidades mentais, quase cega, desprovida do suporte dos meus descendentes, traída por alguns monarquistas [...], uma vítima da continuada apatia do governo republicano, de Salazar a Mário Soares, decidi: transmitir [...] todos os meus direitos, como chefe da Casa de Bragança, a D. Rosario Poidimani, um príncipe e empresário, que bem o merece [...]."
Possivelmente, Maria Pia terá, antes de morrer, repensado o "bem o merece", dado que veio a acusar Poidimani de não ter cumprido o acordado entre ambos: que ele lhe pagaria uma pensão vitalícia. A cerimónia da "abdicação" ("legitimada" por uma alegada adopção de Poidimani por Maria Pia) realizou-se em Portugal, em Abril de 1987, e foi noticiada em jornais e na televisão (no site da Real Casa pode ver-se uma entrevista a Joaquim Letria).
Num parecer interno do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Abril de 2006, o departamento de assuntos jurídicos esclarece que, "quando um titular abdica, não o pode fazer designando um sucessor". E acrescenta: "Visto não ser D. Maria de Bragança a legítima sucessora, em nada adianta o acto de abdicação [que] carece de legitimidade."
No entanto, a partir da "abdicação", Poidimani começou a comportar-se como "chefe da Casa Real", atribuindo títulos de nobreza, comendas, passando documentos diplomáticos, além de promessas de empréstimos fáceis através de contas off-shore. O já citado parecer do MNE diz ainda: "[...] A actuação como "duca de Bragança", chefe da "Real Casa de Portugal" e "príncipe de Saxónia de Coburgo e de Bragança", e de, por esse meio, se ter feito passar por representante do Estado português, ao ponto de ter aberto "consulados" da "Real Casa de Portugal", conferiu fé pública aos seus actos e revelou-se lesiva para o bom nome de Portugal e da legítima Casa de Bragança." "[Além disso], o sr. Rosario Poidimani tem ostentado um brasão que, até 1910, correspondeu ao brasão do chefe de Estado de Portugal, acção que parece configurar um uso abusivo e ilegítimo de símbolos da soberania nacional [...]."
O siciliano nunca hesitou, aliás, em reclamar os seus direitos ao trono de Portugal. Na entrevista a João Sarmento contesta o argumento de que, mesmo que Maria Pia tivesse sido reconhecida, ele não poderia fazer parte da linha da sucessão por tal ser proibido pela constituição na altura da monarquia. Alega que Maria Pia "alterou a constituição" precisamente para resolver esse problema. E quando o jornalista lhe pergunta se, ao reclamar-se da "linha legítima", significa que "pretende ser rei de Portugal", responde calmamente: "Ao assumir essa pretensão tenho que estar preparado para tudo e, em última consequência, para reinar."