O crepúsculo das divas
Rodeadas de gatos e de lixo, Edith Ewing Bouvier Beale (Big Edie) e a filha (Little Eddie) viviam há 20 anos isoladas na mansão Grey Gardens, em East Hampton, nos EUA. O quotidiano excêntrico da tia e prima de Jacqueline Bouvier Kennedy foi documentado nos anos 70 pela câmara dos irmãos Maysles, que regista a existência de duas criaturas que, nascidas e criadas em meios aristocráticos, foram esquecidas e afastadas do mundo.O nome da propriedade dá título ao documentário, sugerindo de forma poética o declínio e demência de duas mulheres encravadas no tempo e cravadas de isolamento; Grey Gardens evoca um jardim enterrado pelas folhas caídas e mortas, a juventude que os anos atraiçoaram, o devir inevitável da decadência. E é sobre este palco documental que assenta o espectáculo de Gonçalo Ferreira de Almeida e Maria Duarte: no fascínio dramático de duas mulheres que transformam a realidade em ficção e se tornam personagens do seu mundo ilusório, resistindo ao presente e à miséria.
Em Keepsake, desaparece o ambiente decrépito da mansão e os pormenores de realismo psicológico. O espaço cénico (a cargo de João Rodrigues) apresenta-se despojado, destacando-se as linhas simples e geométricas de um estrado sobre o qual as personagens ostentam o seu glamour e onde o acontecimento é a ausência de acção. Nada acontece senão o puro espectáculo: o show e o real são indistintos. Mãe (Gonçalo Ferreira de Almeida) e filha (Maria Duarte) estão paradas no tempo, entoam músicas do passado e recordam as suas vocações artísticas perdidas.
As excentricidades de Big e Little Edie são apresentadas de forma notável na construção física e performática dos corpos e no recurso ao artifício consciente e irónico. Gonçalo Ferreira de Almeida traça, sem caricaturar, o snobismo e arrogância da velha mãe: as suas mãos alongam-se, os dedos movimentam-se com requinte, a voz transfigura-se e adquire diferentes matizes. A personalidade dominadora revela aspectos obscuros e facetas monstruosas escondidas por detrás do humor, lembrando personagens de Tennessee Williams. Maria Duarte mantém a pose de estrela Technicolor, uma pin-up girl sorridente que, ao longo do espectáculo, deixa transparecer o drama dos sucessivos casamentos frustrados e a vida sacrificada ao egoísmo da mãe. Inspirados nas estranhas vestes da "personagem real", os fabulosos figurinos do designer de moda, Aleksandar Protich, integram e favorecem a constante performance da Little Edie (misto de Betty Grable e Lana Turner), ex-modelo petrificada nos anos 50.
Questionável será a opção dos actores falarem em inglês e sem legendagem, dando-se por adquirido o domínio da mesma língua por parte do público. Se se compreende que a tradução possa interferir na concepção do espectáculo, já a ausência de legendas parece um preciosismo elitista inspirado em Big Edie.
Rita Martins