Por quem os telefones tocam
A votação por telefone envolveu sobretudo os que quiseram que um deles ganhasse ao outro. Daí o resultado
Parece que já quase toda a gente percebeu que um concurso televisivo não é um referendo. Este, que acabou no domingo com a vitória de Salazar, reduziu-se durante meses a uma discussão sobre Salazar e Cunhal, e acabou num despique entre os dois. A votação por telefone envolveu sobretudo os que quiseram que um deles ganhasse ao outro. Daí o resultado. Note-se que as sondagens com amostras representativas hierarquizaram os candidatos a Grande Português de um modo completamente diferente. Por isso, o que interessa comentar não é a votação, mas a discussão que a RTP suscitou. Foi Salazar que concentrou quase todas as atenções. Ora, a propósito de Salazar, não se discutiu uma personagem histórica, mas uma figura de retórica - um cabide imaginário onde o facciosismo de uns e a ignorância de outros penduraram arbitrariamente males e virtudes. Notou-se isso até no modo como os que comentaram, a favor ou contra, a ortodoxia financeira, o colonialismo, ou a neutralidade nos conflitos europeus raramente pareceram conscientes de que nada disso foi específico do salazarismo. A obsessão com as finanças já tinha sido de Afonso Costa. A fé colonial atingira um grau muito superior em Norton de Matos. A neutralidade correspondia à posição portuguesa que geralmente convinha à Inglaterra.
Visto desta democracia, e por mais defeitos que se atribuam ao actual sistema, é difícil não achar repugnante um regime como o que Salazar manteve neste país. Foram décadas onde, em Portugal, se negou o direito de oposição ao governo, a tortura foi um método aceite para a recolha de informações, a imprensa esteve sujeita a censura, e se praticou a discriminação política no emprego. Mas quando vemos que alguns dos que condenam tudo isso no caso do salazarismo são os mesmos que nunca se incomodaram com as mesmas coisas na União Soviética ou em Cuba, percebemos que a indignação que o salazarismo neles provoca não se deve ao horror perante a ditadura, mas antes às causas que, segundo eles, a ditadura terá servido: o capitalismo e a igreja. Recordo um artigo de William Buckley a recomendar a Pinochet que se fizesse antiamericano, como são hoje Chávez e Mugabe. Seria a maneira de diminuir drasticamente o número dos seus críticos.
Tudo isto nos remete para uma época da história portuguesa em que o que importava, num regime, não era a maior ou a menor liberdade que esse regime garantia, mas a sua finalidade facciosa. Salazar gostava de lembrar que, sob a I República, tinha sido vítima de censura, e que em 1919 estivera para ser saneado por delito de opinião. Mas não se importou, uma vez no poder, de sujeitar os seus adversários ao mesmo, tal como alguns destes haveriam de fazer durante o PREC, em 1975, segundo revelou o edificante Relatório da Comissão de Averiguação de Violências sobre Presos Sujeitos às Autoridades Militares. Salazar e os seus adversários pensavam em termos de guerra civil. Em 1926, Raul Proença, um dos mais liberais entre os republicanos, reconheceu que "é preciso ser cruel para alguns, para bem da pátria", e advertiu os seus correligionários a propósito da atitude a ter para com os que estavam do outro lado: "Se não ousais, eles ousarão um dia. Se os não subjugardes, eles vos subjugarão. É deste hoje uma luta de vida ou de morte". Foi esta a tragédia portuguesa do século XX: um país em que era preciso censurar para não ser censurado, sanear para não ser saneado, prender para não ser preso. Foi deste país que nos livrámos desde 1976.
Devemos ensinar às criancinhas que Salazar foi mau ou que Cunhal tinha más ideias? Talvez. Mas seria preferível prepará-las para resistir à mentalidade da guerra civil, à mania para chamar "fascista" a quem pensa de uma maneira diferente, ou ao hábito de reivindicar em exclusivo a "democracia" e a "modernidade". Sessenta mil telefonemas a favor de um Salazar em confronto com Cunhal num concurso televisivo não chegam para fazer uma Frente Nacional. Mas há gente à esquerda que gostaria de transformar esses telefonemas numa Frente Nacional - porque precisa de um par à altura para criar o ambiente em que a sua própria intolerância possa parecer justificada.
Por isso, meu caro leitor, se lhe aconteceu chegar ao fim deste texto a pensar que o autor quis "branquear" Salazar e portanto é um "fascista", faça isto: procure um espelho, ponha-se em frente, e o que vir no espelho, pode ter a certeza de que é um "fascista". Tente então resistir a esse "fascista". Não pergunte por quem os telefones tocam: é por si.
Historiador