Torne-se perito

Casa portuguesa

a História puxa história, já se sabe. A que aqui se contou a 16 de Março, a propósito da canção Kanimambo, encobriu, sem querer, outra: a de uma canção ainda mais famosa, porque traduzida pelo Mundo inteiro. Trata-se de Uma casa portuguesa, que, ao contrário do que os versos possam sugerir, não nasceu de súbita inspiração ruralista mas de um episódio picaresco. E não, não nasceu no Portugal profundo de outras eras, mas sim no africano Moçambique.A informação vem de um seu contemporâneo, Rui Novais Leite Monteiro, também ele a viver à época na antiga colónia portuguesa e conhecedor da história. Veio contá-la, por seu próprio pé, e as palavras seguintes tentam reproduzi-la. Certo dia, na década de 40 do século XX, dois homens sentaram-se numa sala do Hotel Girassol, na antiga Lourenço Marques, hoje Maputo. Um hotel que, por sinal, ainda existe no mesmo local e com a mesma fachada, com o nome de Girassol Bahia Hotel. Ora os dois homens eram Reinaldo Ferreira (filho do célebre Repórter X, poeta, futuro autor de canções como Kanimambo ou Menina dos olhos tristes) e Vasco Matos Sequeira, que se entretinham, ali, a fazer versos... pornográficos. Talvez porque achasse a coisa imprópria para o lugar, o maestro Artur Fonseca recordou aos dois divertidos amigos que estavam numa casa portuguesa, aviso que traria um "respeitinho" implícito. Reinaldo não se conteve e disse: "Ora aí está um bom título para uma canção!" Ao que o maestro terá retrucado: "Com certeza!" E assim, na vulgar modorra de um hotel português plantado em África, nascia uma canção que, pela sua génese, talvez seja mais irónica do que os versos parecem indicar: "No conforto pobrezinho do meu lar,/ há fartura de carinho./ A cortina da janela e o luar,/ mais o sol que gosta dela.../ Basta pouco, poucochinho p"ra alegrar/ uma existência singela.../ É só amor, pão e vinho/ e um caldo verde, verdinho/ a fumegar na tigela." Era uma casa portuguesa, com certeza. E sem versos pornográficos.
O mais curioso é que acabou por ser o maestro admoestante a escrever a música, ficando a letra a cargo da dupla Ferreira e Sequeira. E quem pense que a canção se estreou na voz de Amália, desengane-se: gravou-a primeiro uma cantora amadora de Moçambique, Sara Chaves; depois João Maria Tudella, num disco só com músicas de Fonseca (na capa, vê-se Tudella ao piano e Fonseca de pé, apoiado no tampo); e, por fim, Amália, que lhe deu projecção mundial. Muitos a gravaram depois. Até João Gilberto.
No disco de Tudella, o trio assinava canções como Magaíça e Macala, mais ao gosto do cantor. Há três ou quatro anos (o episódio conta-o agora o próprio Tudella), o então presidente de Moçambique Joaquim Chissano encontrou-o num hotel de Lisboa, olhou-o e disse: "Tudella?!" E trauteou: "A negra que vende macala/ tem ancas de impala..." Não trauteou Kanimambo, talvez porque a sua memória fosse... uma casa moçambicana.

Eduardo Prado Coelho encontra-se doente e, até à sua recuperação, este espaço será ocupado, de 2.ª a 6.ª, pelo director adjunto Nuno Pacheco

Sugerir correcção