Salazar ganhou um concurso, não uma eleição
Todos dizem que Salazar ganhou um concurso, não uma eleição. Mas há quem chegue a falar em "morte simbólica do 25 de Abril", quando olha para a vitória esmagadora do ditador sobre reis, navegadores, poetas e políticos de toda a história de Portugal. Os resultados estavam há muito desenhados. A RTP rejeita as críticas que muitos lhe dirigem. Por Adelino Gomes
a O que não representa nada, pode representar alguma coisa?A pergunta, formulada nestes ou em termos semelhantes, parece ter assaltado a mente de muitos portugueses que assistiram, em directo, domingo à noite, à vitória de António de Oliveira Salazar sobre todos os seus adversários, num concurso organizado pela RTP sobre os maiores portugueses de sempre.
Salazar, que governou Portugal em regime de ditadura durante cerca de quatro décadas, derrotou entre outros, o rei fundador, D. Afonso Henriques (4º), bem como figuras que ganharam lugar cimeiro em compêndios de história ou de literatura universais, como Vasco da Gama (o menos votado dos dez finalistas), Infante D. Henrique (7º), Camões (5º) e Fernando Pessoa (8º).
A derradeira mobilização dos apoiantes de Salazar e de Cunhal, durante o último programa da série Os Grandes Portugueses, não alterou o sentido do voto anterior.
Quando o programa se iniciou, pouco depois das 10 da noite de domingo, ambos ocupavam já os dois primeiros lugares na lista dos maiores portugueses de sempre, posta à votação dos seus telespectadores pela RTP durante os últimos seis meses. Entre um e outro, a percentagem era sensivelmente a mesma do que aquela que Maria Elisa anunciou, cerca de três horas depois.
O mesmo quanto ao diplomata Aristides de Sousa Mendes, que obteve o terceiro lugar no concurso e terá chegado, no início da segunda fase do concurso, a liderar efemeramente a votação.
Das mais de 50 mil chamadas recebidas na RTP durante o programa, sete mil foram para Salazar, cinco mil para Cunhal e 300 para Vasco da Gama (último classificado). No seu conjunto, provocaram apenas algumas "oscilações" nas percentagens obtidas pelas figuras classificadas entre os quinto e décimo lugares, disse ao PÚBLICO Nuno Santos, director de programas da RTP.
O director não pôde, porém, avançar informações mais detalhadas sobre os nomes das figuras em relação às quais o volume de chamadas provocou as referidas oscilações.
Resultados "não valem"
Do ponto de vista técnico-científico, os resultados divulgados pela RTP "não valem nada", diz Pedro Magalhães, director do centro de sondagens da Universidade Católica.
Do ponto de vista político, personalidades da democracia portuguesa ouvidas pelo PÚBLICO tendem a desvalorizar os resultados, também, quando não, mesmo, a iniciativa.
Mas não deixam de admitir-lhe algum significado. O pensador Eduardo Lourenço, embora isolado, chega a falar em "morte simbólica do 25 de Abril".
Uma amostra para ser representativa da população "tem de ser seleccionada", faz notar Pedro Magalhães. "A votação por telefone tal como foi feita para este concurso não tem qualquer representatividade. Porque não só não evita enviesamentos como não dá a todos [os portugueses, que seria suposto representar] as mesmas probabilidades de serem escolhidos."
O politólogo recorda, a propósito, o debate Sócrates-Santana Lopes, em 1995, na SIC, que utilizou um método telefónico semelhante do qual resultou... a vitória de Santana Lopes.
Já o mesmo não diz quanto aos resultados de dois estudos de opinião, a cargo de duas empresas de sondagens e divulgados nos últimas dias.
Usando metodologias que assentam em amostras probabilísticas e não na iniciativa dos telespectadores (eventualmente induzida por interesses ideológicos ou partidários), os dois inquéritos - um a cargo da Marktest, o outro da Eurosodagem - colocaram nos dois primeiros lugares da escolha dos portugueses D. Afonso Henriques e Camões, remetendo Salazar e Cunhal para posições mais recuadas. Independentemente de uma análise mais fina das respectivas metodologias, Pedro Magalhães não tem dúvidas em conceder a qualquer dos dois uma credibilidade que nem de perto nem de longe encontra naqueles que o concurso da RTP apresentou. "Não sendo perfeitos, estes encontram-me mais próximos da população".
Apesar de rejeitar a fiabilidade em termos estatísticos dos resultados do concurso da RTP, Pedro Magalhães admite que a votação represente alguma coisa. "Mas o quê? E quem? Olho para estes resultados e não sei que opiniões estão aqui a ser representadas. Quem são aquelas pessoas? Houve um esforço de mobilização para se produzirem mais votos? Quem o fez? De quem são os votos? Estes atravessaram toda a população?" A estas respostas o cientista político, especializado em estudos de opinião, responde com quatro palavras: "Não sabemos absolutamente nada".
Nação sem memória
Numa conversa a partir da sua residência em França, Eduardo Lourenço classificou a vitória de Salazar, o segundo lugar alcançado pelo líder histórico do PCP, Álvaro Cunhal, e os lugares modestos alcançados por figuras proeminentes da história de Portugal como "um scanner do estado cultural de uma nação sem memória" e a demonstração da falência do ensino no pós-25 de Abril.
Numa declaração apenas aparentemente contraditória com o que acabara de dizer, Lourenço acrescentou: "Isto não tem importância nenhuma. Mas isso é pior, ainda. Como dizia o escritor Ruben A., em Portugal as coisas não acontecem, acontecem-se. A gente dá conta, regista e passa à frente. O país deglute tudo."
Igual tónica no ensino colocou José Mattoso. O historiador, a quem foi o PÚBLICO que deu os resultados do concurso, classifica o ensino da História, sobretudo nos níveis básico e secundário, de uma "qualidade lamentável". Os jovens na escola deviam aprofundar o estudo de uma figura como Camões para não hesitarem quanto ao valor simbólico que ela representa quanto à "identidade da nação".
José Mattoso rejeita a ideia de ter de algum modo politizado a iniciativa, ao tomar posição pública contra ela. "Não sou especialista em manipulação da opinião pública. Limitei-me a exprimir a minha opinião segundo as concepções de História que sigo. A forma como o concurso foi lançado, acentuando oposições entre personagens, levou a deturpar por completo tudo aquilo para que deve servir a História", diz. Salazar "é uma figura fracturante, que provoca divisões insanáveis", acrescenta, dizendo-se "triste que não haja uma figura que possa ser invocada como consensual" pelos portugueses.
O historiador e comentador José Pacheco Pereira não se surpreende com os lugares modestos em que figuras míticas da história de Portugal surgem na votação. "As boas notícias não são notícia. As coisas boas não mobilizam ninguém", diz.
O modelo do programa, contudo, favorecia a mobilização de militantes que as votações maciças em Salazar e em Cunhal - os dois nomes que de alguma maneira personificaram as divisões entre os portugueses no século XX - indiciam.
"A RTP cometeu dois erros: excluir Salazar no início e adoptar um mecanismo que não sendo baseado em estudos de opinião, mobiliza militantes", diz Pacheco Pereira para quem "o salazarismo é um fenómeno do passado", ainda que Salazar tenha deixado marcas, a mais importante das quais foi a censura, que condicionou gerações de portugueses.
A defesa de Salazar por Jaime Nogueira Pinto e de Cunhal por Odete Santos favoreceu a mobilização dos militantes de um lado e do outro. "Isto é uma patetice total", "um disparate", cujos efeitos perversos "nada têm a ver com a História e com a Política".
Eles andam aí
Insensível às razões da RTP, o historiador e biógrafo de Álvaro Cunhal sustenta que o formato do programa torna difícil "combater pela razão, a espectacularização do concurso. O que mobiliza não é a razão, é a emoção".
O coronel na reserva Vasco Lourenço - um dos obreiros do golpe militar que derrubou o regime do Estado Novo fundado por Salazar - chama ao concurso "uma chachada", revelando que recusou o convite para nele colaborar.
"Lamento que a televisão pública entre em jogadas deste tipo e dê a um simples concurso tratamento que leva as pessoas a pensar tratar-se de uma eleição democrática", diz, acrescentando que os resultados o levam a concluir que os dois únicos grupos que se mobilizaram "foram os fascistas e os comunistas, mas os fascistas conseguiram organizar-se mais do que os comunistas".
Os votos não têm "significado nenhum" e não há que lhes dar importância", pois é o tipo de concurso montado pela RTP que "dá origem a resultados destes".
Querem dizer, no entanto, que eles andam aí. "Ou melhor, que nunca de cá saíram. Têm é estado debaixo das secretárias e pensam que neste momento têm condições para pôr as orelhas de pé", remata este coronel, que preside à Associação 25 de Abril.
Reagindo com ironia aos resultados do concurso, que acompanhou de longe, mas com preocupação, Eduardo Lourenço evoca um dos seus títulos mais famosos - O Fascismo Nunca Existiu (D. Quixote, 1976): "Cá se fazem cá se pagam. O título agora cai-me em casa..."
Fotografias do livro "Fotobiografias Século XX-António de Oliveira Salazar", de Joaquim Vieira
(Círculo de Leitores, 2001)
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