Crise de 62 contada pelos que a dirigiram
Faz hoje 45 anos, milhares de estudantes revoltaram-se. Marcelo Caetano solidarizou-se com eles, pela autonomia da universidade. Jorge Sampaio e alguns dos principais líderes em Lisboa, Coimbra e Porto contam como viveram esse dia e a influência que a luta teve na sua vida.
Por Adelino Gomes
a "Parem as inscrições ou o homem da cantina dá-me um tiro. Ou o pessoal passa fome." A mensagem electrónica chegou, anteontem à tarde, com nota de urgente, aos computadores do "pessoal" da crise académica de 1962. Membro da comissão organizadora da sessão comemorativa do acontecimento, o remetente, Artur Pinto (Direito), explicava na segunda linha da mensagem a razão do apelo: já ia em 360 o número de inscrições, margem limite para as 350 refeições que calculara e que tinha encomendado ao "homem da cantina", esta segunda-feira. A grande adesão à iniciativa, passados 45 anos sobre a crise académica, indica quão fundo e duradouras permanecem, em tantos antigos estudantes, as marcas de três meses de confronto entre as três academias universitárias - Lisboa, Coimbra e Porto - e o regime de Salazar.
A história é, no essencial, conhecida. Para surpresa não apenas dos estudantes e professores mas também do reitor da Universidade de Lisboa, Marcelo Caetano, a polícia de choque cercou a cidade universitária logo às primeiras horas da manhã de 24 de Março de 1962. Os dirigentes associativos dos estudantes tinham enviado 20 dias antes, ao ministro da Educação, Lopes de Almeida, um pedido de autorização para as celebrações com que pretendiam assinalar a data: colóquios, actividades desportivas e culturais.
Apesar de nenhuma resposta ter sido dada aos três convites para que estivesse presente, era convicção generalizada que o ministro não iria impedir a realização do acto, no qual estava prevista também a presença de estudantes de Coimbra e do Porto. De resto, e contrariando boatos que corriam, o reitor garantira, no dia anterior, aos dirigentes da RIA (Reunião Inter Associações), que o Dia do Estudante se iria realizar.
Nem os protestos de Caetano - figura de topo do Estado Novo e que era na altura ainda visto como o delfim de Salazar - conseguiram suster a fúria do regime: apesar de promessas do ministro da Educação, por duas vezes, naquele dia, a polícia carregará com violência sobre os estudantes.
Mentiras ministeriais, agressões brutais da polícia, humilhação inflingida ao reitor, que mantinha relações cordiais com os dirigentes associativos - está constituído o caldo de cultura explosivo que vai baptizar politicamente milhares de jovens estudantes portugueses.
Nos três meses de agitação que se seguem e nas ondas de choque que se repercutem pelas vidas de muitos deles - 150 perdem o ano, muitas centenas são presos, vários torturados, 43 expulsos do sistema de ensino, numerosos chamados à tropa - forja-se uma nova geração que prepara o fim do Estado Novo.
A mesma que, uma década e meia depois, há-de ocupar alguns dos lugares cimeiros do regime democrático. E que hoje, uma vez mais, Jorge Sampaio (então secretário-geral da RIA, consensualmente visto como a figura de referência da revolta estudantil) representará quando descerrar uma lápida comemorativa, às 13h30, na Cantina Velha da Universidade de Lisboa. Local mítico da crise de 62.
Foi lá que mil jovens viveram pela primeira vez a experiência de uma greve de fome e de uma detenção pela polícia. É lá que cerca de 400 sexagenários - ou quase lá, os que, ainda no liceu, também se empenharam na luta - se concentram para o descerramento da lápida (um CD editado para este dia pela Fundação Mário Soares inclui muitos dos documentos da crise). Antes, na Aula Magna, a evocação da luta será feita por Medeiros Ferreira (Lisboa), Judite Cortesão (Coimbra), Alexandre Alves Costa (Porto) e Ruben de Carvalho (Pró-Associação dos Liceus).
Jorge Miranda tinha 20 anos. Simples estudante de Direito, como se define, não exercia qualquer cargo no movimento associativo de então. Não foi preso, nem expulso da universidade. Nem sequer perdeu o ano, embora as suas notas tenham sido "afectadas" e se tenha visto obrigado a fazer duas cadeiras em Outubro. Não foi, em suma, um mártir. Mas viveu intensamente todos os acontecimentos. Excertos das notas de um diário (inédito), que foi redigindo ao longo da crise e que, a nosso pedido, recuperou numa versão "com algumas correcções literárias".
Domingo, 25 de Março de 1962(...) No fim da aula, notei que havia grande movimentação pelos corredores da Faculdade, com os dirigentes da Associação Académica a dizer que a cantina estava fechada e que o Dia do Estudante ia ser ou tinha sido proibido.
(...) Talvez à 1 hora e meia ou 2 horas, a força da polícia veio para a frente de Letras e o comandante mandou-nos dispersar. Ninguém, contudo, obedeceu e o ambiente tornou-se pesado. Foi então que surgiu um professor (que vim a saber ser Luís Lindley Cintra) que se dirigiu a nós, aconselhando calma, e que foi falar com o comandante do destacamento. Entretanto, circulava a notícia de que o reitor, Marcello Caetano, não tinha sido informado da decisão do Governo e que estava bastante descontente.
(...) No estádio, havia a actividade normal de sábado, com jogos e provas de atletismo. (...) O tempo ia correndo e eu começava a ter fome, porque não tinha almoçado.
Mas cerca das 6 horas (ou um pouco mais tarde) soubemos que a polícia, a polícia de choque, se dirigia para o estádio e alguma inquietação veio de novo. Nós não éramos muitos. Tenho dificuldade em calcular, talvez entre 500 e 1000 pessoas. Espontaneamente, sentámo-nos no chão e esperámos.
Os polícias avançaram e nós levantámo-nos e cantámos o hino nacional, com revolta. Alguns de nós gritámos: "Assassinos! Assassinos!"
Foi quase de imediato que, com enorme espanto e alívio vimos chegar ao estádio Marcello Caetano, em pessoa. E, quando o vimos, aplaudimo-lo longamente. Era o reitor que vinha tomar conta das instalações da Universidade. Também estava nervoso, pareceu-me, enquanto falava com um oficial da polícia.
(...) Disse que tudo iria resolver-se, que poderíamos sair sem problemas do estádio e que, à noite, às 9 horas, poderíamos jantar no restaurante Castanheira de Moura. Não percebi bem se era um convite, uma recomendação ou uma autorização. Os polícias retiraram-se e nós logo de seguida.
(...) Os meus pais estavam preocupadíssimos com a minha ausência e mais ainda ficaram, quando lhes contei o que tinha sucedido. Mas procurei sossegá-los, dizendo que agora o reitor tinha intervindo e que tudo acabaria em bem. Por isso, não se opuseram a que eu saísse, depois de ter tomado um copo de leite.
Fui ao Saldanha tomar um autocarro, mas acabei por ir de táxi para o Lumiar. Na Alameda das Linhas de Torres, tivemos de parar, porque havia muita gente na rua. Eram grupos de estudantes que vinham para trás, porque, afinal, não podia haver jantar nenhum. A polícia tinha barrado a passagem e batido com casse-tête.
Voltei eu para trás e, no mesmo táxi, regressei à Rua Pinheiro Chagas. Regressei indignado, porque, evidentemente, só o Governo é que podia ter dado aquela ordem, desautorizando, de novo, Marcello Caetano e mostrando que, afinal, era ele que tinha medo dos estudantes. Mas isto não vai acabar assim.
Tive dificuldade em adormecer e levantei-me cedo para escrever isto.