Questionar essa necessidade (no fundo, e em determinado grau, a necessidade de se fazer um filmecomo "O Caimão") é um dos aspectos mais curiosos deste filme altamente escorregadio e "elusivo", mas não é um questionamento que surja no vazio, inconsequentemente - pelo contrário, talvez seja mesmo o que lhe decide a estrutura e o rumo.
Não ser, por exemplo, um filme nem pouco nem muito "sensacionalista", nem pouco nem muito"denunciatório", e no limite talvez só um pouco sobre Berlusconi. "O Caimão" consiste basicamente emduas histórias cruzadas. A história da desagregação familiar do protagonista Bruno, que se está aseparar da mulher, e a história da sua tentativa de "reagregação" profissional: foi um produtor decinema popular (e "reaccionário") nos anos 70, depois entrou em declínio e nunca mais se endireitou;abandonado pelo último realizador que lhe era fiel (papel a cargo do veterano cineasta GiulianoMontaldo), que preferiu levar o seu projecto de filme sobre Cristóvão Colombo para outro produtor,agarra-se com unhas e dentes ao projecto de "O Caimão", um filme sobre Berlusconi que lhe foiproposta por uma jovem realizadora estreante - e agarra-se não por ser um filme sobre Berlusconi ("eu até votei nele"), mas por lhe ter caido nas mãos, por ser a única hipótese viável de trabalhar.
Como um burlesco crescentemente nervoso e angustiado, a história de "O Caimão" é esta aventura pessoal/profissional de Bruno. É a espécie defundamental indiferença dessa aventura e dessas históriaspara com o "tema" do filme (que só entrapraticamente pelo "filme no filme") que torna interessantes e intrigantes as aproximações de Moretti.
Entre a condição familiar de Bruno, o declínio do cinema popular italiano de 70, e a sombra de Berlusconi, que relação? O filme sugere alguma explicação, mas nãotoda, assim como não esconde uma hipótese de fotografia de uma geração "encalhada" e de um retrato de conjunto italiano. Mas o que é interessante é que Moretti, trabalhando e organizando a sua narrativa quase numa maneira de"montagem intelectual", desencadeie no espectador umcurioso processo mental - será ele, espectador, quem deve procurar o "fil rouge" dessa disseminação do"político" no quotidiano, pessoal, cultural, profissional. A angústia de "O Caimão" vem daí, da tensão invisível da sua construção. O seu final apocalíptico, em sombra e em chamas, recusando um rosto a Berlusconi (porque foi acumulando rostos para Berlusconi), torna evidente pelo menos uma coisa: Berlusconi está no "caimão" mas o "caimão" não é Berlusconi. Em "O Caimão", "caimão" provavelmente é apenas nome de de código para "Itália".