A Camorra perdeu a sua rainha (não o reino de Nápoles)
Um pai traiu a própria filha, e a polícia italiana
fez um blitz à máfia de Nápoles. Mas a cidade onde
"o Estado está ausente" e a Camorra reina vai deixar
de ser a grande Praça da Droga na Europa, com doses de cocaína a 10 e 15 euros e cadáveres dia-sim-dia-sim? Os napolitanos receiam que não. Alexandra Lucas Coelho
a Sexta à noite, em Nápoles? "Comer uma "pizza" e cheirar coca", diz a napolitana, Lívia Apa, investigadora de língua portuguesa. "Mais de metade dos meus alunos cheira coca. É normal, é baratíssimo, uma dose custa 10 ou 15 euros, há pessoas que vêm de toda a Itália para comprar coca aqui."De toda a Itália? De toda a Europa: "Nápoles é a principal praça europeia da droga", avalia Norberto Gallo, professor de História e Filosofia e fundador do site www.napolionline.org, onde reúne informação sobre a Camorra, a máfia de Nápoles, que a si própria se chama O Sistema.
Nome terrivelmente justo (como Lívia, Norberto e outros naturais da cidade ontem repetiam ao telefone), e ainda mais justo agora, reforça Lívia: "Nunca vi a cidade tão mal desde o terramoto de 1980." Ao pé de sua casa mata-se e morre-se dia-sim-dia-sim.
A tragédia de Nápoles - reino shakesperiano onde "o Estado está completamente ausente" (palavras de Lívia) - é justamente O Sistema ser a Camorra, de onde a droga vem e para onde a droga vai, cimentada por inúmeros negócios e redes.
Esta máfia será hoje uma organização cinco vezes maior do que a máfia da Sicília, segundo o jornalista Roberto Saviano, que há quase um ano publicou o livro de investigação Gomorra, trocadilho entre Camorra e a cidade bíblica que simbolizava a decadência. Saviano tornou-se uma figura nacional - e internacional, com traduções anunciadas - não apenas por ter escrito o que rapidamente foi best-seller mas porque se viu obrigado a passar à clandestinidade, com protecção policial, à la Salman Rushdie.
O mais recente rei deste reino de Gomorra chamava-se Luigi Giuliano. Foi capturado no começo dos anos 2000. A sua filha Marianna subiu ao trono. E ele traiu-a. Na madrugada de terça-feira, também ela foi capturada.
Eis Shakespeare, aos pés do Vesúvio.
Ou como a Camorra perdeu uma rainha de 27 anos - mas não o reino de Nápoles - numa das maiores operações policiais de sempre contra a máfia napolitana, nesta véspera de Primavera.
Demorou três anos de investigações, contou com um milhar de agentes de três forças - Carabinieri (equivalentes à GNR), Polizia (equivalente à PSP) e Guardia di Finanza (guarda fiscal) -, enfrentou (como acontece frequentemente nas acções contra as máfias italianas) a barreira natural de acólitos e acólitas da Camorra (incluindo uma grávida, contaram as agências) e resultou em 200 detidos, entre os quais 28 mulheres.
Os resumos na imprensa interpretaram isto como um sinal de que as mulheres começam a ascender ao poder na Camorra, mas investigadoras como Gabriella Gribaudi, socióloga da Universidade de Nápoles, que tem estudado as estruturas familiares e o papel das mulheres na Camorra, corrige e contextualiza.
Sim "é verdadeiramente extraordinário" o número de 28 mulheres presas neste "importante blitz", diz, ao telefone a partir de Nápoles, mas a subida das mulheres ao poder não é de agora. "Muitas mulheres comandaram na Camorra, sempre foram importantes."
Há várias razões para isso.
A estrutura desta máfia, distingue Gabriella, é "muito menos hierarquizada", menos vertical, que a da Sicília. Enquanto a Cosa Nostra tem um capo dei capi - chefe dos chefes -, a Camorra "é uma rede de famílias muito alargadas, com pais, irmãos, cunhados, mas também filhas e irmãs". Pode acontecer que ao pai suceda um filho, mas também uma filha, quando os filhos homens foram presos ou assassinados, ou são demasiado novos.
Gabriella tem na ponta da língua histórias de mulheres - a quem os napolitanos chamam, "em inglês, ladies Camorra" - como Maria Licciardi, cujo irmão morreu na cadeia. Uma família de Scampia, subúrbio de Nápoles que o livro Gomorra trata extensamente.
Estas famílias são "muito mais igualitárias que as sicilianas", mesmo em termos económicos. "Nápoles é uma grande cidade, uma sociedade urbana, a Camorra é uma máfia urbana." Enquanto na Cosa Nostra da Sicília coexistem núcleos rurais e urbanos.
A loura da Forcella
As famílias da Camorra dividem Nápoles como um animal de talho, e são históricas as guerras de rua para rua, com mortes sumarentas, à faca, ao martelo, a tiro, ao machado, à bomba, incendiados.
E nos historiais da Camorra estão raparigas de 16 anos apanhadas com garrafas de ácido na carteira. Serem muito machas - e mais organizadas e sensatas do que os homens - são elogios frequentes.
Filha, neta, irmã, parente que se preze investe contra a polícia nas poucas vezes que a polícia investe contra a Camorra - porque há muitas zonas de Nápoles onde a polícia simplesmente não entra.
Mesmo quando não detêm o poder, as mulheres estão lá como barreira natural, quando os homens (menos frequentemente mulheres) correm risco de prisão.
As mulheres - e as crianças de oito, nove ou dez anos que Lívia Apa vê todos os dias conduzirem as vespas que em Nápoles andam em todas direcções, porque esse é O Sistema.
Não há semáforos, não há lei.
Mas não é anarquia, ressalva Lívia - "Está tudo organizado para a Camorra." Para a servir. E as crianças são ágeis correios de droga. Crescem assim.
Marianna também, mas como uma princesa da Forcella, a parte de Nápoles controlada pelo clã Giuliano. Não é uma rua, nem um bairro, é um conjunto de ruas e ruelas.
Luigi, o arrependido
Tem pergaminhos, a Camorra, na família Giuliano. Criminosos, contrabandistas, assassinos, traficantes, é esta a herança de Luigi Giuliano, o homem a quem chamavam realmente o re, dialecto napolitano para "o rei", e que teve um papel central nas "guerras" dos anos 80, quando centenas de pessoas foram mortas.
Uma das histórias que se conta sobre a família Giuliano é a dos rádios que foram enviados para as cadeias, como prendas aos parentes presos. Tinham dentro lâminas capazes de degolar homens.
Carmela, a mulher que aos 13 anos casou com Luigi, é descrita como uma traficante de droga e extorsionista.
E Marianna, a filha, é o que um frequentador do bar da família - um dos vários negócios dos Giuliano - descreveu como "uma atraente loura de olhos azuis". Diego Maradona faz parte do álbum de retratos de famosos que passaram pelos casamentos da família e por esse bar onde Marianna também trabalhou.
Pois também a Marianna a casaram cedo, aos 16 anos, com Michele, o filho do clã rival, Mazzarello, união de dois mini-reinos, para fundar o grande reino, como de novo Shakespeare podia escrever. Foi isto em 1996.
E eis que em 2002 Luigi é preso e decide tornar-se colaborador da polícia. Um dos seus filhos, Giovanni - que recusara o "programa de protecção" da polícia concedido aos mafiosos colaboracionistas - acabou assassinado em Dezembro passado. Michele, o marido de Marianna, fora entretanto preso.
Assim ascendeu Marianna a rainha de Forcella.
Cai agora, às mãos do próprio pai.
Até Umberto Eco apelou
A lista dos que tentaram perseguir as máfias tem imensos cadáveres. Entre os mais célebres em anos recentes estão os juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, respectivamente num violento atentado à bomba e num carro armadilhado, no mesmo ano, 1992, em Palermo, capital da Sicília.
Em Nápoles, uma das vítimas mais famosas da Camorra é Don Giuseppe Diana, um padre abatido a tiro quando celebrava missa, em Março de 1994.
Foi ele quem primeiro comparou Nápoles a Gomorra, e, em homenagem, é essa ideia que o jovem Roberto Saviano retoma no seu livro. Saviano trabalha como jornalista para a revista L"Espresso e conta que o seu mergulho no mundo da Camorra, sobretudo nos subúrbios de Nápoles começou por "raiva".
"Tudo o que não é negativo ou positivo é neutral e inútil", resume, segundo a lógica de O Sistema. "E entrar nessa categoria significa não existir."
Numa sociedade onde o silêncio salva a pele, onde quem não está com a Camorra está contra ela, onde não lutar contra os mafiosos é uma estratégia de sobrevivência, Saviano chama os nomes pelos nomes e dá números, incluindo os 3600 mortos pela violência desde que ele nasceu.
O livro saiu em Maio, numa grande editora italiana, a Mondadori.
Em Outubro, Umberto Eco, um dos mais prestigiados intelectuais do país foi à televisão apelar: "Não podemos deixar Saviano sozinho, como Falcone e Borsellino. Neste caso, apelos de solidariedade aos escritores são inúteis. Sabemos de onde as ameaças vêm, sabemos os nomes próprios e os apelidos daqueles que fazem essas ameaças. O que é necessário é uma intervenção pública do Estado."
Que começara a acontecer a Saviano, enquanto os primeiros 100 mil exemplares do seu livro esgotavam em seis meses e ele recebia um prémio significativo? Entrava num restaurante de Nápoles e torciam-lhe o nariz, ia a uma loja e convidavam-no a sair.
Tinha-se tornado perigoso servir um cappucino ao homem que desmontava a Camorra e não poupava o conluio desse Sistema com o Sistema oficial.
Talvez por isso a presidente de câmara, Rosa Russo Jervolino, tenha tornado ambíguos os cumprimentos ao jornalista, ao ponto de dizer que ele era um símbolo da Nápoles que denunciava.
"Vivemos numa cidade que está de joelhos, em que todos os dias matam alguém, em que única economia é a mafiosa, e é suposto termos uma câmara de esquerda", indigna-se Lívia Apa. "E a grande política desta presidente é a construção de um estádio de futebol! E claro que as pessoas ficam felizes com isso. E entretanto as taxas de educação estão ao nível de África! As crianças simplesmente não vão à escola!"
A isto junta-se o desemprego, que a Camorra usa para um eficiente sistema de "avençados", sustento de muitas famílias além das que são parte da Camorra. Uma espécie de rede de assistência social, de vento em popa, onde o Estado não assiste.
O subúrbio de Scampia no retrato de Saviano: "Desemprego crónico e uma total ausência de planos para o desenvolvimento social fizeram disto um lugar capaz de armazenar toneladas de droga, e um laboratório para lavar dinheiro sujo, transformando-o em actividades comerciais legais. Em 1989, os relatórios indicavam que o norte de Nápoles tinha uma das mais altas incidências de dealers de droga per capita da Itália. Quinze anos depois, tornou-se no mais alto da Europa e está entre os cinco maiores do mundo."
Operação Praça Limpa
A polícia chamou à sua mega-operação de terça-feira Praça Limpa.
Um contraponto para a Praça dos Passadores - sobretudo de cocaína e haxixe: a heroína está em baixa - que pode ser uma metáfora para toda a cidade e que Saviano descreve assim: "Os salários são pagos semanalmente, 100 euros para os que ficam de vigia, 500 para o coordenador e para o homem que recolhe o dinheiro dos dealers, 800 para os passadores individuais e 1000 para os que se encarregam dos armazéns e escondem a droga em casa."
Quem falou em anarquia? Isto é sistema. E mais: "Os turnos vão das três da tarde à meia-noite e da meia-noite às quatro da manhã. De manhã é difícil passar porque há demasiados polícias. Toda a gente tem um dia de folga por semana, e toda a gente que chega atrasada à Praça é penalizada com um desconto de 50 euros do seu salário por cada hora perdida..."
E o blitz de terça-feira significa o começo do fim? Que o pesadelo de todos os dias de Lívia, Norberto ou Gabriella pode vir a ser realmente combatido pelo Estado italiano? Nenhum parece ousar acreditar muito nisto. "O lugar que os Giuliano perderam vai ser tomado por outras famílias", diz Norberto. "Estão mais débeis, mas não estão afectados." Gabriella está de acordo: "A cada golpe eles refazem-se, é essa a impressão que temos. A extensão do narcotráfico é enorme, tem uma força incrível." E Lívia: "A nossa sensação é que não há esperança de mudar."
O terramoto de 1980 mudou as estruturas da sociedade, crê esta académica. "Os laços sociais mudaram e a Camorra começou a gerir todo o dinheiro que vinha do Estado central." A esquerda já passou entretanto pelo poder, e activistas de esquerda como Lívia sentiram-se "traídos" por ela. Ou seja, já acreditaram que o reino não tinha necessariamente de ser podre. E depois ele apodreceu mais.
Marianna Giuliano, a filha de 27 anos do antigo chefe da Camorra, foi presa anteontem pelos carabinieiros no bairro de Forcella em Nápoles, numa operação que levou à detenção de 200 pessoas. Depois de se ter tornado a cabeça do clã, foi traída pelo pai, "arrependido" desde 2002. Chamam-lhe a rainha de Forcella e é descrita como uma atraente loira de olhos azuis.