Philip Roth O escritor cruel já pode morrer
Philip Roth tornou-se o primeiro escritor norte-americano a vencer três vezes o Pen/Faulkner Award, o mais importante galardão literário americano, desta feita por Everyman, o seu último livro. A consagração para um dos ilustres membros do mais famoso curso
de escrita criativa dos EUA, o Iowa Writers" Workshop
a Philip Roth, nas cada vez mais raras entrevistas que dá, não deixa que lhe tirem fotografias. Abre uma excepção se não insistirem para sorrir. Sorrir é que ele não quer. Pelo menos foi assim há dois anos, quando um repórter do jornal inglês Guardian se deslocou de propósito a Nova Iorque para o entrevistar aquando do lançamento de Everyman, o seu último livro que vai ser publicado em Maio nas Publicações Dom Quixote com o título Todo-o-Mundo. O espantado jornalista quis saber se ele nunca sorria. "Claro que sim. Para dentro, quando estou a um canto da sala e ninguém me está a ver", foi a resposta. Roth há-de estar a rir-se agora, no seu retiro de escrita onde passa a maior parte do ano sozinho, e há-de estar a rir-se à conta desse exacto livro, Everyman, que, em finais de Fevereiro, foi laureado com o Pen/Faulkner Award, o mais importante galardão literário americano. Mas não é só isso: Roth tornou-se assim o único escritor americano a vencer três vezes esse prémio abençoado pelo escritor maldito William Faulkner.
Ele é um dos raros escritores a juntar o National Book Award ao PEN/Faulkner e ao Pulitzer, foi considerado por Harold Bloom (o mais importante ensaísta americano, ao lado de George Steiner) um dos quatro maiores escritores americanos de sempre (juntamente com Thomas Pynchon, Don DeLillo e Cormac McCarthy) e é apenas o terceiro escritor americano a ver a sua obra completa ser publicada pela Library of America (a publicação estará terminada em 2013). É um anual candidato ao Nobel, mas, dizem os que lhe são próximos, até lhe agrada perder (coisa rara).
É como se Roth fosse finalmente entronizado como maior escritor americano vivo, mas não é só isso: é a aceitação do judeu de classe média nascido em Newark, New Jersey como o maior analista da sua geração. E dos habituais candidatos ao título de maior escritor americano de sempre, o seu nome é o que surge mais vezes: Roth, imagine-se, é consensual, mesmo odiado. Sim, Philip Roth já pode morrer.
Pelo menos foi isso que ele disse na tal entrevista ao Guardian: "Já não me parece uma injustiça tão grande morrer". Roth teria a noção de que com Everyman teria completado o essencial da sua obra, deixado um legado que abarcava os temas essenciais da sua época e da sua identidade. A ironia é que o livro que o consagra oficialmente é uma longa meditação sobre a morte, aqui e ali quase eivada de ternura, e despojada de crueldade de uma forma que tinha estado totalmente ausente dos últimos 25 anos da sua escrita. (A propósito de Everyman quase se pode falar de arrependimento.)
E, no entanto, foi preciso esperar até estes últimos 25 anos para que Roth atingisse a grandeza que agora o consagra. Durante muitos anos Roth foi, acima de tudo, um sátiro, um violentíssimo crítico do mundo americano, empenhado em polemizar em questões sexuais, políticas (um dos seus livros "menores", Our Gang, é um desbragadíssimo ataque aos anos da presidência Nixon, tão acerrimamente destrutivo quanto qualquer coisa que Kurt Vonnegut ou Mailer tenham escrito), religiosas.
O segundo filho de dois judeus de classe média de Newark venceu o National Book Award em 1960 logo ao primeiro livro, Goodbye Columbus (escrito em 59). Tinha estudado Literatura Inglesa em várias universidades (Bucknell, depois a de Chicago), depois deu aulas de escrita na de Iowa e em Princeton. Pelo meio esteve no Exército, experiência que lhe serviu para escrever a personagem do comunista caído em desgraça Ira Ringold, de Casei com um Comunista, o livro em que, como sempre, expiava os demónios da sua vida pessoal, vingando-se da ex-mulher, Clarie Bloom.
O importante é o livro
É necessária aqui uma explicação. Roth sempre usou a sua vida privada nos seus livros. Ele não o nega, mas também não o afirma - menoriza. "Pouco me importa se sou eu ou é uma personagem. O que me interessa é o livro", dizia na entrevista ao Guardian - e procurem outras entrevistas: ele dirá o mesmo. Já o fazia no início da carreira, em My Life As a Man e O Complexo de Portnoy (Bertrand), o seu terceiro livro e primeiro maior. A personagem feminina de ambos era inspirada na sua primeira mulher, Margaret Martinson, que lhe fora apresentada por Saul Bellow - que entretanto se tornara seu amigo. Por toda a sua vida Roth deixaria espalhados pedaços de si nos seus livros, o que muitas vezes foi motivo de escândalo.
Bellow era uma espécie de ancião da chamada geração dos liberais, que, grosso modo, incluía E.L. Doctorow, Norman Mailer, Thomas Pynchon, Don DeLillo, Tom Wolfe, Hunter S. Thompson, William Styron (amicíssimo de Roth), John Updike, William Gaddis. Salinger retirou-se cedo, Gore Vidal (grande amigo de Roth) nascera na "aristocracia" americana e não poderia nunca representar o homem americano, Gaddis escreveu pouco (mas Roth leu-o e assimilou a noção do diálogo como motor da acção), Styron viveu mais assombrado pelo alcoolismo e pelas depressões do que pela literatura, DeLillo é demasiado cerebral (e menos narrativo), Updike demasiado centrado nas questões sexuais, mas todos eles (juntos ou uns contra os outros, à conta dos ciúmes) levaram a literatura americana a pensar o que era essa coisa de ser norte-americano.
E juntos (ou uns contra os outros) foram os primeiros a poder olhar para a América para lá da grande nuvem negra da Grande Depressão da década de 30 que fora o principal motivo de escrita da geração anterior. Roth tinha mais uma vantagem face aos outros: era, à excepção de Pynchon (cujo génio delirante sempre foi de difícil recepção), Gaddis e Styron, dos menos politizados - estava livre para fazer de tudo um alvo. Inclusive de si próprio.
É difícil traçar o momento em que essa pequena revolução geracional começa, mas há quem aponte um nome, um livro e uma data: a abertura de The Adventures of Augie March (54), de Saul Bellow, que começava assim: "Eu sou um americano...". Era possível falar dessa identidade sem raiz, e Roth fê-lo, 40 anos a fio.
Ironia das ironias, é com o biográfico Patrimony (91) que começa o grande Roth, o Roth enorme, épico, empenhado em mostrar as grandezas e defeitos do homem médio. Patrimony não era um livro sobre si mesmo (esse era Operation Shylock: A Confession, de 93), era algo mais cruel: uma descrição de mais de 200 páginas da morte do pai do escritor. A crítica ficou deslumbrada com o herói americano Roth senior, mas pareceu não reparar na violência das descrições físicas e escatológicas do definhar de Roth pai (que incluíam a incontinência do senhor e seus efeitos práticos).
Pegue-se num americano comum, que, vindo do nada, construiu alguma coisa: este é o sonho americano. Agora pegue-se nesse homem e algures nos cimos da sua vida ponha-se uma encruzilhada e ele, embriagado de si mesmo, não nota que tem de tomar uma decisão - e segue o caminho errado: desse livro para a frente foi este o método de Roth, que atinge, teoricamente, o seu epíteto em A Mancha Humana (que é considerado um Roth menor), quando o narrador proclama: "Ninguém sabe nada de si mesmo".
É esse o cerne da escrita de Roth: a ideia de que isto, isto que vivemos todos os dias, tudo pelo qual lutamos infernalmente para construir em nosso favor - é baseado no absurdo. Os nossos valores, as nossas regras, as nossas crenças, mesmo as nossas forças: não dependem de nós, são heranças ou acasos e podem ruir a qualquer instante. "A História entra-nos na sala de jantar", disse Roth numa entrevista: e "Ninguém sabe nada de si mesmo".
Sabemos apenas, diz-nos sub-repticiamente Roth, que tentamos em vão (e pateticamente, acrescentaria ele) dominar as nossas pulsões. Roth queria chegar aí, a esse lugar primevo onde elas ainda existem em toda a sua força - e conseguiu-o na sua obra-prima de 95, O Teatro de Sabbath (traduzido na Dom Quixote). É a epopeia de Mickey Sabbath, ex-bonecreiro cujo único interesse na vida depois do suicídio da sua ex-mulher são as cópulas com a mulher do estalajadeiro da cidade - e cuja vida rui aquando da morte dela. Sabbath é uma das personagens mais viscerais de Roth, quase tão violento e frágil na sua busca da sexualidade livre como sustento à vida quanto uma personagem de Cormac McCarthy.
A vida ela mesma
Desde os anos 70 Roth andava a usar dois alter-egos: Nathan Zuckerman, o mais próximo de si, escritor, e David Kepesh, espécie de lugar onde Roth depositava as suas diatribes sexuais. É com Zuckerman que Roth, partindo da matriz iniciada com O Teatro de Sabbath, escreve a maior parte dos seus épicos fulminantes (Pastoral Americana, de 1997, Casei com um Comunista, 98 e A Mancha Humana, 2000).
Mas agora, em vez de uma personagem maior que a vida, Roth entretinha-se com a vida ela mesma: "Penso que a decisão de como escrever já estava tomada quando quis ser escritor, isto é, ver a história através da vida de pessoas comuns sempre me interessou".
Mas este é o homem que disse um dia que "quando se tem muitos pormenores num livro, tem-se a vida" e esses livros não eram apenas descrições de vidas comuns, eram rasgos na história americana, em que cada homem comum era levado a confrontar-se com o seu tempo, com os paradigmas de pensamento que nos enformam - até à mais profunda dor.
Casei com um Comunista é um paradigma do que Roth pode fazer com as palavras. Em 94, ele separara-se de Claire Bloom, sua companheira durante 17 anos, que dois anos mais tarde escreveu a sua autobiografia como desculpa para um violento ataque ao escritor, acusando-o de crueldade psíquica e de pôr a filha da actriz (estrela de Luzes da Ribalta, de Chaplin) fora de casa. O caso resultou em escândalo, com John Updike a fazer uma recensão ao livro de Bloom. Apenas Gore Vidal saiu em defesa do seu amigo.
Mas um ano depois Roth respondia: Casei com um Comunista conta a vida de Ira Ringold, judeu nascido em Newark que se torna estrela de rádio e casa com uma ex-estrela de cinema mudo que tem uma relação de dependência psíquica e abuso com a sua filha. No livro, Roth descreve a queda de Ira às mãos de um livro da mulher que o acusara de comunisno durante a época mccarthista. Crueldade do escritor, vingança? Impossível saber.
Em Outubro deste ano haverá novo livro de Roth, Exit Ghost, mas, confiando nas palavras dele, valerá de pouco: "Um, oh, não me parece que dentro de 20 ou 25 anos as pessoas andem a ler estas coisas", disse, em entrevista recente. Porquê? Porque "há outras formas das pessoas se ocuparem". Têm 25 anos para ler Roth, o escritor cruel. E Roth já pode morrer.