Manoel de Oliveira, de Belle de Jour a Toujours Belle
uando se quer dizer de uma mulher de alguma idade que ela continua a ser bonita, diz-se, em português, "sempre bela" ou, em francês, língua deste filme de Oliveira, "toujours belle". "Elle est toujours belle" ou "vous êtes toujours belle" é um cumprimento a uma beleza que não passou com o tempo ou a que o tempo fez os mínimos estragos possíveis (apesar de tudo, o "toujours" relativiza essa beleza que ao tempo se reporta) já que, como tantas vezes os barrocos figuraram, o tempo costuma arrebatar com ele a beleza e não há maneira de reparar dos anos o irreparável ultraje, para traduzir a Athalie de Racine com pé quebrado.Mas o filme de Oliveira não se chama Toujours Belle mas Belle Toujours o que é uma expressão menos usual e mais rebuscada. Porquê? Porque se trata de retomar o título célebre de um filme célebre de Luis Buñuel: Belle de Jour (1967). Já era uma expressão enviesada e não muito usual. Os franceses chamam "belles de nuit" às prostitutas.
Como no filme de Buñuel, Séverine (Catherine Deneuve) não se prostituía de noite mas de dia, gata borralheira ao contrário, daí que livro e filme se chamassem Belle de Jour, o que em português deu o estranho Bela de Dia, tradução literal que não fazia muito sentido porque em português a expressão "bela de noite" não é de uso.
No filme de Oliveira, antecedido pela legenda: "homenagem a Luis Buñuel e a Jean-Claude Carrière" (este último argumentista de Belle de Jour e de todos os filmes finais de Buñuel, desde Le Journal d"une Femme de Chambre de 1964, até Cet Obscur Objet du Désir de 1977, com as excepções de Simon del Desierto de 1965 e de Tristana de 1970) há umas "belles de jour" ou "belles de nuit" (as prostitutas interpretadas por Leonor Baldaque e Júlia Buisel, que nem sequer nome têm) mas se elas não estão lá por acaso (já lá vou) a expressão aplica-se a Séverine (Bulle Ogier) que retoma a personagem há quarenta anos interpretada por Catherine Deneuve. Quarenta anos depois, Séverine já não se prostitui, nem de dia nem de noite, e exibe mesmo uma declarada aversão a um passado que repudia. Mas, para Henri Husson, hoje como ontem Michel Piccoli, ela é a mulher que sempre foi e que, por isso, persegue com uma avidez muito maior do que no filme de Buñuel. Por isso, este filme, em que Séverine e Henri jamais se encontram de dia, nunca podia ser uma Belle de Jour II. Mas também não podia ser uma Belle de Nuit. Era melhor deixar as belles (de jour ou de nuit) em paz ou em guerra e passar a outro título? Precisamente não. E precisamente não porque Henri só continua a interessar-se por Séverine (e Séverine por Henri) porque o passado não os larga, porque, apesar das quatro décadas passadas e das diferenças físicas (no caso de Séverine, tamanhas que o papel foi confiado a outra actriz, também, um dia, actriz de Buñuel) nenhum deles se esqueceu da história antiga. Henri tenta perceber em Séverine o que não percebeu em Belle de Jour; Séverine quer conhecer o final da história que em Belle de Jour termina num enigma. Por isso, Séverine é belle toujours, sem que o dia ou a noite a modifiquem no que quer que seja.
Vou ao filme de Buñuel, mas sobretudo para recordar esse final. O marido de Séverine, um médico da alta burguesia (Jean Sorel) que aparentemente nunca suspeitou da dupla vida da mulher, é atingido a tiro por um ciumento cliente dela (Pierre Clémenti). Não morre, mas fica paralítico, cego e mudo. Um dia, o amigo Henri (o único que conhecia a verdade toda, se é que a verdade toda algum dia pode ser conhecida) visita o casal e sadicamente informa Séverine que vai contar tudo ao marido. Fecham-se os dois na sala, onde nem Séverine nem os espectadores (ou seja, nós) entramos. Passado muito tempo, sai e não diz palavra a Séverine. Esta vem ter com o marido que nada pode exprimir. Mas, do olhar do cego, cai uma lágrima. Henri contou-lhe tudo ou essa lágrima tem outra razão? Buñuel deixa-nos sem o sabermos. Sem sabermos até se o masoquismo de Séverine é que quer ver as coisas assim para melhor se castigar e melhor sofrer.
enhum filme termina nunca e a palavra fim é sempre um artifício. Mas podemos conjecturar que, se as coisas se passaram como o "falso final" de Buñuel deixa supor que se passaram, seria plausível que Séverine procurasse um dia Henri, para saber finalmente se este contou ou não contou ao marido o que ela fazia todas as tardes em certa casa e certa rua de Paris. Henri, tivesse contado ou não o que sabia, já se tinha vingado de Séverine. Não tinha muitas razões para a voltar a procurar. Oliveira, porém, inverteu a situação. Desde a longa sequência inicial (uma sala de concertos, em que se toca a 8ª sinfonia de Dvorak, num longo e fabuloso plano com a inconfundível assinatura do cineasta português), quando Henri descobre Séverine na assistência, é ele o ansioso e o buscador, é ele quem quer, a todo o custo, encontrar Séverine, que, mal o vê, lhe foge e consegue desaparecer na multidão. Henri, na genial interpretação de Piccoli, não é, como fora outrora, um homem seguro, um "meneurs de ficelles", que, depois de ter instigado Séverine à prostituição, a visita no bordel de Mme. Anaïs, para mais a humilhar e depois a torturar com a visita ao marido. É uma personagem inquieta, instável e se há um enigma são as razões que o levam a perseguir Séverine de rua em rua ou no hotel. Se há um enigma, é saber o que quer Henri de Séverine.
Henri demora muito tempo a encontrar Séverine. Uma serie de lapsos hitchcockianos, e uma sequência num hotel, que faz lembrar o hotel onde Kim Novak desaparece em Vertigo. Finalmente, o encontro à porta de uma loja. O que lhe diz ele que a convence a aceitar um último encontro e um último jantar? A câmara recua e não ouvimos esse diálogo.
Mas, na fabulosa e imensa sequência final (o jantar a dois, à luz das velas, num "reservado" dum hotel de luxo parisiense) sabemos que ele lhe prometeu contar o que disse ao marido no final de Belle de Jour.
Esse estranhíssimo jantar, quase totalmente silencioso, fez-me lembrar um romance, há alguns anos muito badalado, do húngaro Sándor Marai, intitulado em português As Velas Ardem Até ao Fim. Nesse romance, também quase tudo se passa num jantar à luz das velas e num reencontro entre duas personagens que não se viam há muito tempo e tinham uma história tenebrosa a aproximá-los ou a separá-los. Aqui, num décor de encontros clandestinos, com várias gravuras eróticas nas paredes, o que se espera - ou o que Séverine espera - é também a revelação de um segredo. A origem da lágrima do marido, essa lágrima que a continua a obcecar, essa lágrima que levou Oliveira a repegar na história.
Mas de que serve a confissão de Henri? Como poderá saber Séverine se ele lhe vai contar a verdade ou mentir? Perante este novo jogo de ocultações, Séverine sai bruscamente. E é então que surge a mais desconcertante imagem deste filme. Na porta, que ficou aberta, aparece um galo. Porquê? Porque é que as pessoas querem sempre explicações para tudo?
Explicações dão-se ao balcão de um bar, nas confidências trocadas entre um alcoólico e um jovem barman sobre as mulheres, o sexo, e o que o sexo faz das mulheres e as mulheres fazem do sexo. Explicação talvez seja esse quadro de uma mulher nua, que nos vira as costas. Explicações dão-nas as duas prostitutas, uma (a mais nova) seduzida pela elegante velhice de Henri, outra (a mais velha) atraída pelo bonito corpito do jovem empregado. São conversas de café, conversas de copos, conversas de farrapos, imagens pintadas, longe tão longe da inquietude da sinfonia de Dvorak, ou das ruas à noite silenciosas, onde se não sai do mesmo sítio.
Naquele jantar de segredos insondáveis e de silêncios que nenhuma palavra cobrirá, tocamos o mistério total, ou um dos mistérios totais que há muito mais de quarenta anos é o cerne do cinema de Oliveira. O mistério dos corpos fechados e das almas viciosas, o mistério da alma envolvida num corpo. Aquilo a que assistimos, no jantar do hotel, como no concerto, é uma representação de alma e de corpo, que pode não significar nada, como Shakespeare disse pela boca de Macbeth, ou que pode significar tudo.
O jantar quem o pagou foi Sévérine, pois que da carteira de que se esquecera tira Henri o dinheiro para o pagar (prostituição invertida). Quem encenou aquele espaço e depois quem o "desencenou" foram anónimos criados, nem tidos nem chamados para esta história, mas que ficam sozinhos diante de nós, repetindo um ritual, até dele deixarem apagar as velas que não ardem até ao fim. Sem eles o jantar não existiria. Mas eles não sabem, nem nunca saberão, se aquela mesa o amor foi servido ou foi désservi, como dizia Jacques Brel.
O galo é outro nome dessa ignorância, é outro nome do nosso espanto e talvez seja o olhar dele ou a crista dele a única imagem para a impossibilidade absoluta de penetrarmos uns nos outros, de nos conhecermos uns aos outros.
Ao longo do filme, entre as idas e vindas de Henri, a câmara mostra-nos, muitas vezes, a estátua dourada de Joana d"Arc da Place des Pyramides, de Emmanuel Frémiet. Entre a pucelle, inacessível na sua armadura e no seu brilho, e o fantasma de Séverine (e é como fantasma que ela sempre aparece e desaparece) está o inacessível que Henri persegue e não pode encontrar e não se deixa encontrar.
Mas não é verdade que os galos cantam ou à meia-noite ou à aurora?