Abraão e a viagem que "inventou" o monoteísmo
Referência fundadora para judeus, cristãos e muçulmanos, não se sabe se Abraão personifica um clã ou uma personagem concreta. Mas a sua aventura mudou a História
a No princípio, foi um mito, personificação de um grupo ou uma personagem concreta? Viveu há 1500 anos ou mais? Ao aceitar uma proposta de aliança com Deus, Abraão mudou a História. Deixou o culto politeísta da sua tribo e intuiu, "inventou" o Deus único. A sua viagem mudou a História. Tornou-se na referência inaugural para judeus, cristãos e muçulmanos.Naquele tempo, seria uma viagem quase impossível. Seis mil quilómetros a pé e com animais de carga, um clã inteiro pelo deserto, entre territórios hostis: de Ur, na Suméria (actual Iraque), até Canaã (onde está Israel), passando por regiões que hoje constituem a Síria, a Turquia, o Egipto, a Arábia Saudita.
Singular foi também a viagem espiritual deste homem: alguém que se põe a caminho, escuta uma promessa, que se torna "amigo de Deus", espera pacientemente um filho, exercita a hospitalidade e intercede pelos condenados. E que, no fim, ainda é posto à prova: conseguirá abdicar do bem mais precioso, a vida do filho que tanto tardara? Nesta aventura, vêem a Bíblia e o Corão a Aliança fundadora da relação entre Deus e a humanidade. A Bíblia narra a história, o Corão interpreta a vida do patriarca na revelação de Deus.
Pier Giorgio Borbone, professor de Língua e Literatura Hebraica em Pisa, evoca (Abramo Padre di Tutti i Credenti, ed. ETS, Pisa, Itália) a "relação específica e única" entre Abraão e Deus. Uma proximidade intensamente pessoal. Os judeus invocam o Deus "de Abraão, de Isaac e de Jacob", um Deus único evocado na pluralidade. Tal como no Corão, onde Ibrahim (o nome árabe) é referido 69 vezes (apenas Moisés é mais citado): "Cremos em Deus, no que nos foi revelado, no que foi revelado a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Jacob e às tribos." Sintetiza Borbone: "Íntimo de Deus, eleito e destinatário da promessa."
Abraão, este nome evoca uma promessa. Há dúvidas quanto às datas - foi há 3500 anos? há cerca de 4000? - mas a maioria dos investigadores aponta um tempo algures por volta do século XVIII a.E.C. (antes da Era Comum). Abraão vive em Ur com o seu clã. Ur é, na época, o centro económico e cultural da Mesopotâmia, pouco mais de 10 mil pessoas num porto à beira do Eufrates e nas cercanias do Golfo Pérsico (o mar afastou-se entretanto uns 150 quilómetros). Só em Ur foram descobertos milhares de textos em escrita cuneiforme, inventada na região à volta de 3200 a.E.C.
A próspera Ur
Em 2000, o escritor polaco Tad Szulc (autor de biografias de João Paulo II e Fidel Castro publicadas em português) percorreu o trilho de Abraão. E falou sobre Ur com Piotr Michalowski, director da revista Journal of Cuneiform Studies e especialista na civilização mesopotâmica. "Imagino uma cidade próspera, de ruas fervilhantes cheias de lojas", disse o especialista, na reportagem publicada em Dezembro de 2001 na National Geographic.
Uma guerra terá forçado Tera, pai de Abrão (o nome Abraão ser-lhe-á dado mais tarde), a deixar Ur com o seu clã. Mil quilómetros até Haran (actual Turquia). Em Ur e em Haran era a Lua que as pessoas adoravam, sob a invocação de Sin. Em Haran, escutou Abrão um Deus diferente, que lhe ordenava: "Deixa a tua terra, a tua família e a casa do teu pai, e vai para a terra que Eu te indicar. Farei de ti um grande povo", conta a Bíblia, no livro dos Génesis.
A viagem de Abraão é mesmo, para os muçulmanos, a matriz da peregrinação a Meca. Vários dos ritos do hajj evocam episódios da vida de Abraão, desde a construção da Caaba até ao ritual do sacrifício.
O patriarca passa um tempo no Egipto, no Négueb, em Betel, até se fixar "junto aos carvalhos de Mambré, próximo de Hebron", onde "construiu um altar ao Senhor". Aí, Deus promete-lhe o filho que ainda não tem e uma descendência incontável: "Levanta os olhos para o céu e conta as estrelas, se fores capaz de as contar. Pois bem, será assim a tua descendência."
Isaac, filho de Sara
Abrão está velho - terá cerca de 90 anos - e Sarai, sua mulher, também. Hesita: como será isso? A própria mulher propõe-lhe: "Visto que o Senhor me tornou uma estéril, peço-te que vás ter com a minha escrava. Talvez, por ela, eu consiga ter filhos." Um gesto permitido pelo código de Hammurabi, para que um homem tivesse descendência. Agar engravida e nasce Ismael. Aqui radica uma divergência entre judeus e muçulmanos: para estes, Ismael é o filho herdeiro de Ibrahim.
É que mais tarde nasce Isaac, filho de Sara. Na Bíblia, é Isaac e não Ismael o filho com legitimidade para herdar. O nascimento de Isaac é anunciado pelo próprio Deus, que aparece a Abraão sob a forma de três visitantes misteriosos, aos quais ele oferece água e pão. A hospitalidade de Abraão será tema omnipresente. Na espiritualidade, o andaluz Ibn Arabi, considerado o maior xeque sufi, fala dela a propósito da relação entre Deus e o crente. Na arte, Andrei Rubliov, celebrizado no filme homónimo de Tarkovski, pintará em 1411 o ícone que se tornará na obra russa mais comentada de sempre.
Antes, tinha Abrão 99 anos, já Deus selara com ele a sua aliança: "Serás pai de inúmeros povos. Já não te chamarás Abrão, mas sim Abraão, porque Eu farei de ti o pai de inúmeros povos." Esse é o significado do nome: pai de uma multidão. Abraão ganha a universalidade, reflecte Borbone, já não é apenas Abrão, um "pai excelso". A mesma dimensão que São Paulo, no cristianismo nascente, lhe dará, ao chamá-lo pai de circuncisos (os judeus) e incircuncisos (os não-judeus). Os textos do Novo Testamento cristão olham-no como modelo de fé, confiança e disponbilidade, recorda Jean Louis Ska, professor do Instituto Bíblico Pontifício, no livro citado.
No seu diálogo com Deus, Abraão chega a ser quase impertinente. Como quando interpela a destruição de Sodoma e tenta salvar a cidade: "E será que vais exterminar, ao mesmo tempo, o justo com o culpado? (...) Não perdoarás à cidade, por causa dos cinquenta justos que nela podem existir?" "Pois que me atrevi a falar ao meu Senhor, (...) se, por acaso, para cinquenta justos faltarem cinco, destruirás toda a cidade, por causa desses cinco homens?" E a insistência final: "Que o meu Senhor não se irrite (...) Talvez lá não se encontrem senão dez." O atrevimento resulta: "Em atenção a esses dez justos, não a destruirei."
Poupado in extremis
À prova de paciência a que Abraão se sujeitara, Deus acrescenta-lhe uma última: pede-lhe que sacrifique aquele por quem tanto esperara: "Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto." Isaac é poupado, in extremis, pelo próprio Deus, quando Abraão já se preparava para cumprir o ritual - um momento imortalizado em muitas obras de arte ao longo dos séculos.
Este é o acto de fé radical e fundador. Abraão confia até final na presença de Deus. Abandonando-se à promessa, sabe que, no fim, Deus providenciará.
Na reportagem citada, Tad Szulc cita o poema "Hino à bênção de Abraão", do muçulmano Cengizham Mutlu: "Não sente dor, não se lamenta./ Diz: "O meu Deus salvar-me-á./ Dois anjos tinham-no previsto com acerto.// Brasas transformam-se em cinzas./ Faíscas transformam-se em rosas."