António Cruz, o pintor da cidade do Porto nasceu há cem anos

a Há uma situação registada no documentário de Manoel de Oliveira O Pintor e a Cidade (1956) que muitos portuenses terão certamente na memória: uma figura um pouco exótica percorre as ruas do Porto, pára, monta o seu cavalete e começa a pintar o que vê, rodeado de crianças fascinadas com a precisão do desenho. Muitos portuenses poderão ter testemunhado esse quadro, ou mesmo sido uma dessas crianças que nas décadas de 50, 60 ou 70 rodeavam e seguiam António Cruz - é ele o pintor de que se fala - pelas ruas da cidade.
A associação da figura e da arte de António Cruz - que nasceu faz hoje cem anos - ao Porto está assim assumida de forma quase antonomástica, como se lhe refere o crítico de arte José-Augusto França: "António Cruz é o pintor do Porto". E o documentário de Manoel de Oliveira - na sua primeira experiência cinematográfica com a cor depois de ter frequentado um curso na Agfa, na Alemanha - teve a sua quota-parte na fixação desta identificação. No filme, a câmara do realizador segue António Cruz numa jornada pelos lugares mais conhecidos do Porto, das margens do Douro aos monumentos e bairros do centro histórico. Era o registo cinematográfico do tema até aí mais tratado nas telas do pintor.
Disso deram aliás conta outros críticos de arte, como Bernardo Pinto de Almeida, para quem, "de todo os pintores do Porto no século XX, António Cruz foi decerto aquele que melhor soube entender a cidade", e o coloca na tradição aguarelista de António e Carlos Carneiro. Mas também escritores e poetas, como Eugénio de Andrade, que viu em Cruz "um dos homens que mais espreitaram a alma do Porto", inventando para ela "uma luz morna, de cobre". Estas opiniões estão registadas no catálogo da exposição António Cruz. O Pintor e a Cidade. Cinquenta aguarelas sobre o Porto, que em Dezembro de 2003 assinalou o 20.º aniversário da sua morte. O organizador foi José da Cruz Santos, que assim fez reviver a obra do pintor que foi seu tio.
"Vivi a minha infância no seu atelier de São Lázaro, mas a única coisa que aprendi com ele foi a amassar o barro", recorda Cruz Santos, ainda rendido à mestria do aguarelista, pintor e escultor. "Ele era muito seguro, pintava directamente na tela, sem precisar de desenhar primeiro."
António Cruz estudou na Escola de Belas-Artes do Porto (onde depois foi professor), terminando o curso de Pintura em 1939. Neste ano fez a primeira das duas únicas exposições que teve em nome próprio durante a vida - foi no Salão Silva Porto, em Cedofeita (depois foi também apresentada em Lisboa, na Sociedade Nacional de Belas-Artes). A segunda foi já organizada por Cruz Santos, em 1982, na Casa da Infante. "Nessa altura, já ele estava doente. E passava os dias inteiros na exposição - era a oportunidade de rever trabalhos que já tinha feito há muitos anos e que não voltara a ver", recorda.
Mas António Cruz não foi apenas um pintor do Porto. Viajante incansável, deslocava-se sempre com a sua paleta e pincel na demanda das cores de outras cidades e paisagens. Nesse percurso, montou cavalete na Andaluzia (Sevilha e Granada) e também na Escócia. "Ele considerava-se de origem celta - daí a predilecção pelas brumas e nevoeiro", nota Cruz Santos, vendo também aí a raiz do seu "feitio difícil, estóico".
Para este dia do centenário não está prevista nenhuma manifestação especial. Mas a Câmara do Porto promete homenagear António Cruz, e Rui Rio anunciou que vai propor ao executivo a atribuição ao pintor da medalha de Mérito - Grau Ouro, a título póstumo. E no final do ano Cruz Santos e a Cooperativa Árvore vão organizar uma exposição retrospectiva no Museu Nacional de Soares dos Reis.

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