Projecto de lei do aborto aprovado com divisão expressa entre esquerda e direita
Sociais-democratas que fizeram campanha pela despenalização sentem-se "enganados". Direita acusa esquerda de tornar o aborto "aceitável"
a O projecto de lei sobre o aborto foi ontem aprovado na especialidade apenas com os votos favoráveis dos partidos da esquerda parlamentar que o redigiram em conjunto. Nenhum dos sociais-democratas que fizeram campanha pela despenalização se juntou à aprovação de uma proposta que consideram "amoral". E o próprio PSD acabou por não se rever na redacção de uma sua proposta de alteração entretanto incluída no projecto adoptado por PS, PCP, BE e PEV.Ana Manso (PSD), defensora da despenalização, lembrou ontem, na comissão de direitos, liberdades e garantias que, durante a campanha, havia "um denominador comum" que não ficou expresso na redacção do diploma: associar a uma "decisão informada, consciente e responsável" uma "cultura de vida". Ou seja, acabar com a penalização das mulheres que recorriam ao aborto e, assim, diminuir o aborto clandestino, ao mesmo tempo que o Estado se comprometia com a diminuição do número de interrupções da gravidez não desejadas e com o apoio à maternidade. "Afirmámos à exaustão que a decisão livre não é igual ao aborto livre", recordou.
Campos Ferreira, outro social-democrata pelo "sim", foi ainda mais contundente: "Sinto-me enganado. A este "sim" digo "não"." E acusou o PS de ter conduzido o processo de forma "irresponsável" e "amoral".
Ao PÚBLICO, diria depois que considera que a esquerda foi "buscar tudo o que há de mais liberal" nas práticas europeias, propondo apenas uma "informação standardizada", que não aponta "os outros caminhos que a mulher tem ao seu dispor". E lamentou que tenha havido uma tentativa concertada de afastar a direita que esteve pelo "sim" e até os apoiantes do "não", partidarizando "uma causa que não tinha partidos". "Consideramos dispensável ouvir mais pessoas. Já ouvimos os portugueses", tinha afirmado, na comissão, Ricardo Rodrigues (PS).
Ontem, os deputados do PSD ou votaram contra - juntando-se ao CDS-PP - ou abstiveram-se. Mesmo no caso de uma das propostas de alteração que tinham apresentado e que a esquerda incluiu no projecto de lei aprovado, embora com a redacção alterada. Aguiar Branco (PSD), apoiante do "não", não se reviu na alteração, justificando que "a questão de base da proposta [do PSD] era diferente", pois assentava numa "atitude pró-activa e não só informativa por parte do Estado". E retribuiu à esquerda a acusação do "atestado de menoridade", criticando-a por pensar que "a mulher não seria capaz de decidir depois de ponderar todas as alternativas".
Ao PÚBLICO, Ricardo Rodrigues sublinhou que a alteração "não é um pormenor", mas algo "substancial". Ao estabelecer que o acompanhamento - facultativo - deve abarcar "as condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez", fica explícita a "protecção à vida intra-uterina, que não existia antes", porventura antecipando eventuais dificuldades que o Tribunal Constitucional possa levantar.
Por outro lado, os anteriores "mecanismos de apoio social" foram substituídos pela designação "Estado", o que levou o deputado Pedro Mota Soares (CDS-PP) a afirmar ao PÚBLICO que os centros pela vida ficariam excluídos do acompanhamento. Rodrigues assegura que tal não acontecerá, já que o Estado apoia ou tem protocolos com todos aqueles organismos, estando estes, portanto, abrangidos. De fora ficou, porém, a informação "sobre os regimes de adopção e de acolhimento familiar" referida na proposta do PSD que o PS reclama ter adoptado.
Deputados do PSD que fizeram campanha a favor da despenalização consideram a proposta
"amoral"
- A interrupção da gravidez "por opção da mulher, nas primeiras dez semanas", não é punível.
- A mulher é recebida em consulta médica, assegurada pelo estabelecimento de saúde "em tempo útil".
- Nessa consulta, ela terá "acesso à informação relevante para a uma decisão livre, consciente e responsável" sobre as condições em que é praticado um aborto e as suas "consequências para a saúde"; sobre "a disponibilidade de acompanhamento psicológico" e "acompanhamento por assistente social" durante o período de reflexão; e ainda sobre "as condições de apoio" para "a prossecução da gravidez e a maternidade".
- O acompanhamento é "facultativo", devendo os estabelecimentos de saúde ter "serviços de apoio psicológico e de assistência social".
- A contar da data da consulta de ginecologia e obstetrícia, a mulher está obrigada a "um período de reflexão não inferior a três dias". Se mantiver a decisão de interromper a gravidez, fá-lo "em documento assinado", por si ou, quando tenha menos de 16 anos ou seja "psiquicamente incapaz", pelo seu representante legal.
- Após o aborto, as mulheres são "obrigatoriamente" encaminhadas para planeamento familiar.
- A lei será votada hoje, em plenário, devendo chegar nos próximos dias ao Presidente da República, que tem 20 dias para decidir se veta, promulga ou envia para o Tribunal Constitucional. Após a publicação da lei, o Governo tem 60 dias para proceder à sua regulamentação.